1.4.03

Estadinho

Enquanto o governo se prepara para dar curso à reforma tributária, vão pipocando na imprensa palpites e relatos de um Brasil supostamente dilacerado pelas mordidas do Estado. Na página de rosto do jornal do sindicato dos economistas, um prato de comida aparece surrupiado em 1/3 (o que é isso, colegas?). No Rádio, ouço em flashes ácidos que neste país injusto temos que verter nosso suor por quatro meses do ano para sustentar o famigerado setor público. É malho em cima de malho, e isso dá uma gastura...

Que história é essa de trabalhar para o Estado? Pode-se até trabalhar no Estado, mas jamais em benefício do Estado, pois não se pode conceber o Estado como um agente econômico particular que disputa riqueza com pessoas e empresas. Tudo o que o Estado retira da sociedade com uma mão, retorna necessariamente à sociedade com outra, seja como benefícios sociais, seja como salários, seja como pagamento a fornecedores, seja até como desperdício. Do ponto de vista estritamente econômico, no capitalismo, o Estado é tão-somente uma instância de coordenação dos fluxos de renda privados. Na melhor das hipóteses – na social-democracia - através de seu poder discricionário, o Estado pode até induzir o crescimento econômico ou promover a justiça social, mas nunca será beneficiário das suas próprias ações.

Ao pensar neste assunto, me lembro de uma aula que tive o privilégio de assistir quando aluno de uma universidade pública, em que o professor, postado em silêncio diante da classe, riscava um fósforo, esperava que se apagasse entre seus dedos, para então proclamar: basta isto para estarmos metidos até o último fio de cabelo com a ordem capitalista. Queiramos ou não, somos todos cúmplices desta sociedade complexa em que a divisão social do trabalho é tão importante quanto escamoteada.

Ora, é nesse contexto que devemos pensar o Estado: espaço público onde, em última instância, serão legitimadas as regras da tal divisão social do trabalho.

Qual o quinhão da riqueza produzida anualmente que cabe a cada um de nós? Quem trabalha mais, leva mais? Quem sabe mais, tem direitos maiores? Ou quem tem mais, terá mais ainda? Qual o critério para dizer que uma hora de consultoria jurídica dá direito a mais riquezas do que 10 horas de faxina de uma empregada doméstica?

Para que o consultor jurídico faça o seu trabalho, é preciso que a doméstica passe a sua camisa, que o motorista de ônibus leve a moça ao serviço, que o guarda de trânsito multe o caminhão em fila dupla, que o prefeito planeje ruas mais largas, que um tanto de casas sejam desapropriadas, que o consultor jurídico defenda os proprietários das casas, que um procurador defenda o interesse público,... enfim, é pra lá de complicado viver numa sociedade como a nossa e, mais ainda, dizer quem fez o que pra quem e a que preço.

Se a riqueza é produzida socialmente e o dinheiro é sua expressão maior, então o dinheiro é antes de mais nada um produto social. Portanto, apesar do simplismo com que metemos a mão no bolso para comprar um café, não é trivial saber o que é dinheiro meu, o que é dinheiro dos outros, nem saber onde termina o setor público e começa o privado. Estas, porém, são questões que agitam a humanidade há séculos, e que certamente sobreviverão ainda por muito tempo. Aqui, mais importante do que decifrá-las, é saber a que interesses o Estado brasileiro está direcionado e se atende seus objetivos com qualidade, isto é, com transparência, eficiência, democracia, etc.

Vejamos então: em 2002, o setor público (união, estados e municípios) arrecadou na forma de tributos cerca de 36% de tudo o que foi produzido no país. É muito? é pouco? Depende. A pergunta relevante é outra: quem foram os beneficiários do orçamento público? onde foi utilizado o dinheiro?

E ai é que aquela mesma turma que faz drama estampando o prato de comida mutilado se esquece de dizer que de cada quatro reais arrecadados pelo Estado, um vai para pagar juros (8,4% do PIB). Ou seja, pegando carona no exemplo anterior, daqueles quatro meses trabalhados supostamente para “sustentar” o setor público, na realidade um destina-se ao pagamento de juros da dívida pública, beneficiando, portanto, não o Estado, mas a nata do setor privado, como grandes bancos e empresas. Em 2003, mantidos os juros no patamar atual, estaremos repassando a estes afortunados cerca de 386 milhões de reais por dia!

Dos outros três meses de trabalho que restam na conta do Estado, um – talvez o mês de fevereiro, com 28 dias - vai para custear previdência social, isto é: trata-se de uma contribuição a um sistema onde os trabalhadores de hoje financiam a aposentadoria dos trabalhadores de ontem e daqueles que, por viverem em um país injusto, não tiveram renda para contribuir. É bom lembrar que antes de ser o “ralo” alardeado pelos mais afoitos, a previdência brasileira é um dos maiores programas sociais do mundo, livrando da miséria milhões de trabalhadores rurais que, assim como o consultor jurídico ou o motorista de ônibus, contribuíram com seu quinhão na produção nossa de cada ano.

Por fim, o que sobra de fato para custear o Estado corresponderia a no máximo dois meses de trabalho dos brasileiros, dos quais um se destina a investimento e custeio das políticas públicas propriamente ditas (saúde, educação, infra-estrutura, segurança, etc) e outro a pagar o pessoal envolvido nestas atividades. Em suma, o Estado brasileiro não “custa” mais do que 20% de tudo o que é produzido no país e, considerando-se as fragilidades históricas que marcam o Brasil, o atraso econômico e suas mazelas sociais, este tanto reservado aos interesses públicos é na realidade muito menor do que seria desejável.

A título de comparação, vale a pena lembrar de alguns números interessantes apontados por um estudo da Organização Internacional do Trabalho (em BNDES –INFORME-SE Nº 42 – junho de 2002), que indicam a participação do emprego público no número total de empregos em diversos países. Enquanto no Brasil este número é de apenas 11,5% (i.e., cerca de 1 em cada 10 trabalhadores está empregado no setor público), nos EUA, onde até o metrô é privatizado, este número chega a 16%; na Inglaterra, Alemanha e Canadá é de 20%; e na Suécia e na Noruega, países reconhecidos como os de melhores condições de vida do planeta, alcança quase 38%. Vergonhosamente, neste ranking que comparou o peso do emprego público em 64 países, o nosso Brasil ficou em 58º lugar, perdendo apenas para um curioso grupo de países composto pela Colômbia, África do Sul, Japão, Filipinas, Myanmar e Etiópia.

Enfim, até porque nossas carências são muito maiores do que as dos EUA, da Alemanha, Suécia ou Inglaterra, devemos deixar o discurso fácil pela redução da carga tributária ou pelo estabelecimento de limites de pessoal no setor estatal e lutar pelo redirecionamento do gasto público em favor das populações escanteadas primeiro pelo nosso modelo autoritário de desenvolvimento e depois pela subserviência liberal aos sabores dos credores da dívida pública.

Marcelo Manzano
[ publicado na Caros Amigos - abril, 2003 ]

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