26.3.02

Na Busha

No recém terminado encontro de Monterrey, México, em que autoridades dos quatro cantos se reuniram para discorrer sobre a pobreza, foi lapidar e definitiva uma frase de apenas duas linhas saídas da boca do dono da bola. Encerrando qualquer dúvida que porventura tenha emanado do palavreado dos diplomatas presentes, Bush sapecou a platéia dizendo que "lutamos contra a pobreza porque a esperança é uma resposta contra o terror".

Eis a bela objetividade anglo-saxônica! Depois de defender que só deverão receber ajuda de organismos internacionais os países que se dispuserem a abrir sua economia ao comercio mundial, o sabujo justificou sua generosidade não por abominar a pobreza, nem muito menos por querer manter viva a esperança dos pobres ao redor do mundo. A razão última e definitiva de sua proposição é o medo do terror - e, evidentemente, os tostões que esta estratégia lhe renderão.
Cinicamente, quinze dias depois de erguer barreiras para proteger o aço americano, Bush pede a palavra para nos dizer que a saída para o bom sono dos EUA é intensificar as trocas comerciais com as nações subdesenvolvidas, garantindo-lhes a esperança necessária à docilidade de seus espíritos.

Ora, Sir! É por estas e muitas outras que urge uma reforma dos tais organismos internacionais que há muito só fazem ressoar os desejos das altas finanças norte-americanas. Não fossem os EUA o principal credor de instituições como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional ou o Banco Interamericano de Desenvolvimento, por certo Mr. Bush não se sentiria tão a vontade para perturbar nossos ouvidos com tamanha arrogância.

É bom lembrar que quando foram idealizadas, em fins da Segunda Guerra, estas instituições tinham como objetivo corrigir eventuais distorções nos fluxos de capitais entre economias em diferentes etapas de desenvolvimento e promover a redução da desigualdade entre estas nações. Infelizmente, como desde aqueles dias quem bancou a maior parte dos recursos destes organismos foram os EUA, estes órgãos transformaram-se em poderosos instrumentos da política externa dos americanos, com nefastas consequências para todos os não-americanos do planeta.

Para reverter esta situação e proclamar a independência daqueles órgãos em relação ao poder dos EUA, uma proposta interessante que tem freqüentado o noticiário econômico tem sido a criação de uma taxa sobre operações cambiais entre países. Trata-se da já famosa "Taxa Tobin", algo como uma CPMF internacional, que morderia um percentual sobre todas as aplicações em moeda estrangeira. A idéia, simples porém eficaz, seria não só desestimular aventuras especulativas contra moedas fracas (como acontece hoje com o Peso argentino), mas também arrecadar recursos para financiar o caixa do FMI e dos bancos de apoio ao desenvolvimento. Para se ter uma idéia, se a cada operação cambial fosse cobrado um pedágio de 0,1%, estima-se que seria possível arrebatar 100 bilhões de dólares por ano, o que significa quase o dobro do que estes órgãos arrecadam atualmente.

Certamente, não será tarefa fácil tirar da mão dos gringos este enorme prestigio que conquistaram com seus verdes dólares. Mas, ou o mundo globalizado enfrenta com vontade estas questões, ou teremos que continuar escutando besteira do dono da bola de capotão.


Marcelo Manzano
[ publicado no Diário do Litoral - 26/03/2002 ]

17.3.02

O lixo revisitado

Há tempos atrás a TV Cultura apresentou um documentário bastante emblemático deste nosso mundinho em fim de linha. Tratava do problema do lixo "exportado" pela Alemanha com destino à Indonésia; mais precisamente aos garrafeiros da Indonésia. Explico-me: como o processo de reciclagem do lixo é muito caro para ser realizado pelos padrões alemães (salários elevados, encargos sociais escorchantes, normas ambientais rigorosas, etc.), o governo alemão preferiu vender o seu excedente de lixo para países da periferia mundial, que, a um custo muito menor, podem transformar o lixo em matéria-prima a ser reutilizada nas indústrias destes países.


É isso mesmo. Por mais absurdo que possa parecer, foi neste mercado esdrúxulo que a Indonésia encontrou um nicho econômico a ser explorado. "O nicho do lixo é o bicho!; o nicho do lixo é o bicho!.." devem gritar os garrafeiros em passeata pela defesa dos interesses da categoria profissional. Absurdo ou não, o fato é que, certamente por alguma vantagem comparativa a Indonésia optou por especializar-se na reciclagem e posterior utilização do lixo dos países avançados - e vá ser ecológico assim na cochinchina!


Contudo, entre todos os dramas vividos por aquela gente, que a noite reunia suas famílias em torno do lixo para separar e limpar o lixo - do lixo - o mais impressionante e surrealista daquela situação era o seu aspecto, digamos, político-econômico: entre aquela miserável população lavadora de garrafas criou-se um caldo político que fez surgir um movimento nacionalista, movimento que se opunha frontalmente à desregulamentação do mercado do lixo. Entre o barulho das latas e garrafas, podia-se então ouvir os bordões protecionistas: "o lixo é nosso"; "abaixo a concorrência dos importados".


Tristes trópicos. Assim como nós, a Indonésia - ou, sejamos justos, o Sr. Suharto, aquele ditador bandido que, além dos 4 bilhões de dólares na Suíça, presenteou sua esposa com dez mil pares de sapatos - também abriu seus mercados à concorrência dos (sub)produtos estrangeiros, na esperança de com isto oxigenar sua economia e, quem sabe, partir para um desenvolvimento sustentado (... no lixo?). Entretanto, talvez pela defasagem cambial ou talvez em função da melhor competitividade do produto estrangeiro (e eu fico imaginando como um lixo pode ser mais competitivo que o outro: mais limpinho; separado por cores; rico em fibras; com pouca gordura saturada; ...), ocorreu que o lixo vindo da Alemanha (principal parceiro comercial da Indonésia neste setor de atividade econômica) inundou o mercado interno de lixo, fazendo cair o preço desta commodity de derradeira geração e inviabilizando assim a renda dos garrafeiros indonésios.


Confesso que quando acordei na manha seguinte, ao encarar imóvel meu despertador chinês, senti uma satisfação inusitada: pelo menos os importados daqui, sendo bens intermediários e de consumo final (visto que ainda não são sucata), nos conferem certo estatuto de nação de primeira linha. E eu, que tantas vezes me bati contra esta invasão desmedida de quinquilharias, indignando-me por saber que cada três carros importados que vejo nas ruas correspondem a um emprego a menos no nosso país, fiquei aliviado. Certamente há caminhos e opções ainda piores do que os nossos.

Marcelo Manzano
[ publicado no Diário do Litoral - 17/03/2002 ]

5.3.02

Brincadeira Elétrica

Pois é. Fim de mandato, era de se esperar que pelo menos alguns bons frutos do governo FHC deveriam estar amadurecendo. Mas que nada, curiosamente a trajetória do reinado tucano nasceu de um fruto maduro (o Plano Real), artificialmente regado à base de valorização cambial, e ao que tudo indica deve terminar repleto de laranjas podres. No ano passado veio o apagão, neste ano a dengue, o crescimento monstruoso da dívida pública e agora o novo "seguro" que teremos que pagar para poder contar com a luz acessa dentro de casa.

Além da taxa de R$ 0,049 por kWh (quase 5 centavos) que todos somos obrigados a pagar desde 01 de março de 2002 a título de financiamento das chamadas usinas emergenciais (movidas a óleo diesel), nos próximos dias deveremos estar desembolsando um outro tanto para bancar as usinas movidas a gás.

Vejam só que absurdo: como o governo e seu séquito liberal deixou de planejar algo tão importante como a energia elétrica, após quatro anos de lenta queda do nível de água dos reservatórios fomos obrigados a reduzir o consumo de energia, o que contribuiu para uma aguda freada na produção nacional (o crescimento do setor industrial, por exemplo, caiu de 6,5% para 1,5% em 2001).

Na penumbra e pega de calças curtas, a tucanada célere resolveu então agir, buscando no setor privado empresas dispostas a investir neste escasso mercado brasileiro. Mas, como não apareceram muitos interessados, o governo ofereceu, através do BNDES, dinheiro a taxas bastante camaradas (14,5% AO ANO!), quase 10 vezes mais baixas do que aquelas que costumamos pagar na fatura do cartão de crédito. E pior, para conseguir este dinheiro amigo e ajudar as companhias elétricas o precavido Ministério do Apagão passou a cobrar com meses de antecedência a tal taxa de 5 centavos na nossa conta. É isso mesmo, apesar de estarmos já estarmos contribuindo com nossos sagrados tostões, as novas empresas de energia à diesel só ficarão prontas no próximo mês de julho.

Brincadeira?

Que nada. Agora vem a fase 2. Como neste ano as chuvas resolveram cair, o planejamento do governo falhou mais uma vez e, por mais esdrúxulo que pareça, quando estas novas usinas começarem a operar, vai haver sobra de energia no mercado. Que beleza, em apenas um ano saímos da penúria para a abundância ...

Coisa nenhuma. Como logo depois das usinas a diesel outras usinas termoelétricas movidas a gás devem entrar em operação, prevê-se que a oferta de energia será tamanha, que o governo será obrigado a comprar boa parte do excedente, rateando o custo para todo o conjunto de consumidores através de operações no mercado de energia. Para não desestimular os investimentos das abnegadas companhias de geração de energia, a solução encontrada pelo governo foi sinalizar desde logo que estará mantendo uma "reserva de segurança" no mercado (capacidade ociosa) e repassando o custo indiretamente através do aumento do preço do kWh.

A explicação? Nas palavras do Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, José Guilherme Reis: o mundo dos negócios é assim mesmo, mudam as condições, você reexamina se vale a pena o investimento...

Pois é. Justamente porque a luz lá de casa, ou das indústrias e dos hospitais não deve faltar é que é bom deixar o setor energético e outras áreas estratégicas fora da mão de gerentes que não enxergam um palmo para além do mundo dos negócios. Nunca é demais lembrar que o principal argumento para a privatização das estatais brasileiras era o de que o setor público deveria guardar seus escassos recursos para áreas prioritárias como saúde e educação. Infelizmente, contudo, já no apagar das luzes da era FHC, não só temos pago mais caro pelos serviços das ex-estatais, como o governo têm aberto os cofres do tesouro para "ajudar" investidores privados desalentados com o pobre mercado brasileiro.


Marcelo Manzano
[ publicado no Diário do Litoral - 05/03/2002 ]