1.6.02

Apropriação Indébita

E não é que o véio tinha mesmo razão: conforme o mundo dá suas voltas, o capital segue arrebatando tudo o que encontra pela frente. Recentemente, deu pra se engraçar com a preguiça, estado de espírito que até outro dia era tido como veneno à alma daqueles que por necessidade ou vício se sujeitavam às agruras do labor.

Mas por obra das setas do italiano Domenico de Masi, entramos no século XXI fazendo odes ao “ócio criativo” e celebrando a comunhão entre a virilidade capitalista e as doces curvas da preguiça. Jamais sonhada há duas ou três décadas, a inusitada parceria desponta hoje como o supra-sumo da gestão moderna. Mais do que um mero casamento, propõe-se na realidade uma simbiose onde tanto o capital quanto o trabalho seriam beneficiados pela introdução do ócio no processo de produção.

Simples como a sombra de uma oliveira, a idéia é que se deve reservar na rotina de trabalho espaços para o ócio, momento aparentemente improdutivo, mas fundamental para a fermentação da criatividade.

De fato, como aliás muito bem sabe a grande maioria das pessoas, a incessante busca pela produtividade tem levado a um tal grau de pressão sobre os trabalhadores que muitas vezes a rosca acaba espanando, levando paradoxalmente a uma redução da capacidade produtiva das empresas. E neste contexto, os movimentos de relaxamento das condições de trabalho cumprem uma dupla função: a de atenuar o estresse provocado pela intensificação do trabalho e, principalmente, a de sanar eventuais focos de esclerose no processo de acumulação de riqueza.

E não é de se estranhar que estas idéias aflorem na Itália, berço da arte do bem-viver, mas que nem por isso esteve imune ao mal gosto do utilitarismo do mundo econômico. As idéias de De Masi, que a princípio podem parecer libertadoras e contestadoras, se tomadas com mais vagar, podem ser lidas como reafirmativas das próprias tendências asfixiantes que critica. Quando propõe que o ócio seja incorporado á logica da produção ou que o ócio seja tratado como um insumo necessário ao bom desempenho da força de trabalho, De Masi, na verdade, esta trazendo para dentro do sistema produtivo um dos poucos momentos que nos restavam enquanto indivíduos independentes dos mercados. A partir da idéia de “ócio criativo”, ao mesmo tempo em que ficamos “autorizados” a gozar de certa ociosidade, ficamos condenados a contribuir aos mercados mesmo quando acreditamos estar vadiando.

Com sutil engenhosidade e talvez até à revelia de De Masi, o capitalismo, mais uma vez, dá mostras de sua incrível capacidade de subordinar e incorporar ao sistema até mesmo aqueles elementos aparentemente mais antagônicos ao seu funcionamento.

Por estas e outras, nunca é tarde para exaltar o espírito verdadeiramente libertário de nosso velho heroi Macunaima, sábio em sua preguiça, que jamais cometeria a insanidade de buscar justificativas produtivistas para o sagrado prazer do ócio, inútil e improdutivo como a sombra de um coqueiro.


Marcelo Manzano
[ publicado no Correio Caros Amigos - junho, 2002 ]