1.10.01

Sem verniz

Como diz uma sábia anedota, entre dois economistas há sempre, pelo menos, três opiniões diferentes. E, de fato, temos que convir que a classe dos economistas não prima pela convergência. Entretanto, àqueles que não passaram pelas cadeiras da dita Ciência Econômica, este mar de divergências talvez se pareça mais revolto do que realmente é. Noves fora, os economistas se dividem entre aqueles que acreditam nas forças do mercado como forma de alcançar o bem-estar geral e aqueles que defendem a ação política do Estado na promoção do desenvolvimento econômico e social.

Acontece que, por trás desta diferença explícita, esconde-se uma outra que, embora menos clara e mais profunda, talvez seja mais relevante do que se imagina. Refiro-me ao modo como cada um destes dois grandes grupos encara a próprio objeto da ciência econômica. Por um lado, a maior parte daqueles que lançam suas fichas na defesa das leis de mercado o fazem porque vêem o mundo econômico como o resultado de um processo evolutivo, em que normas e práticas mercantis foram se aperfeiçoando até formar o complexo sistema de leis econômicas que regem o mundo de hoje. Já entre aqueles que argumentam em favor do Estado intervencionista, predomina a idéia de que a economia é um locus de conflito de interesses dos diversos atores sociais (indivíduos, classes sociais, empresas e nações), intrinsecamente instável e desigual, que exige a ação reguladora de uma instituição política soberana - o Estado, seus órgãos de representação e outras instituições públicas.

Ora, estas diferentes visões de mundo, levam-nos ainda a uma terceira e menos palpável distinção entre os dois grupos de pensamento: o primeiro, adepto da economia de mercado, por entender a economia como um objeto em constante aperfeiçoamento e protegido da subjetividade humana, subordina suas análises ao modus operandi das chamadas hard sciences, aproximando-se, portanto, das ciências naturais. Prenhes de objetividade analítica, contentam-se em estudar o que há de mais recente na produção acadêmica e relevam a segundo plano os autores do passado, visto que, por definição, eles estariam superados pelo estado das artes. Já o segundo grupo de pensamento, quando defende a intervenção política sobre os mercados, o faz porque, em última instância, descarta o caráter "natural" das leis econômicas. Próximos do que os anglo-saxãos chamam de soft sciences, esta vertente do pensamento econômico propõe o resgate constante da história, como única maneira de se pensar os movimentos econômicos que afetam a vida de pessoas e de nações.

Pois então. É por estas e outras que de vez em quando um liberal de ocasião sai ao mundo estrilando contra a alcunha de neoliberal. Evidentemente, para quem bota fé na evolução inexorável de seu objeto de análise, nada pior do que ser identificado com visões antediluvianas do mundo econômico. Pela mesma razão, é compreensível que estas mesmas mentes adestradas gostem de apontar o dedo a seus opositores, chamando-os de dinossauros ou saudosistas, imaginando que aqueles que se opõe ao livre mercado deveriam se enrubescer por supostos sentimentos desenvolvimentistas.

Não há verniz a ser raspado. Por mais que os modernos liberais tergiversem ou ignorem a boa teoria econômica de pensadores como Marx, Keynes, Shumpeter ou Kalecky, é mais do que evidente que do ponto de vista da arquitetura econômica mundial e de uma série de indicadores econômicos e sociais, o mundo de hoje é bem menos róseo do que o de três ou quatro décadas atrás. E sentir saudades de um tempo em que as coisas da vida econômica funcionavam melhor, com mais pujança e menos desigualdade, não me parece nada insensato nem retrógrado.

Evidentemente, todos sabemos que a história é irreversível, que o mundo mudou, que o Bill Gates existe, etc., etc. Mas, como a arena econômica sempre será repleta de argumentos ideológicos e contaminada por pesadíssimos jogos de interesses, há que se pesar com muito cuidado a relação entre passado e presente, entre "modelos antigos" e "fórmulas inovadoras".

E, nesse sentido, nada melhor do que voltar os olhos à história econômica brasileira do século vinte. O Brasil, por incrível que pareça e por pouco que se diga, é o caso exemplar de industrialização tardia. Nenhum outro país cresceu tanto quanto o Brasil entre os anos de 1900 e 1980 (nosso PIB cresceu em média 7% ao ano). Como conta a história de nossas próprias famílias, em um período de apenas 50 anos (entre 30 e 80) conseguimos superar o modelo agrário-exportador e implantamos um parque industrial complexo, diversificado capaz de nos colocar entre as dez maiores economias do planeta. Por conseguinte, produzimos talvez o maior êxodo rural da história contemporânea, levando milhões de pessoas às grandes metrópoles que surgiam, criando oceanos de moradias mal ajambradas, mas criando também uma mobilidade social sem precedentes. "Brasil, o país do futuro" não foi apenas uma expressão populista. De fato, contrariando a tudo e a todos, navegamos como ninguém pelos mares conturbados do século XX.

Mas então o que deu errado?

E é na resposta a esta pergunta que a coisa pega. Para os liberais e outro tanto de incautos, a economia evoluiu, a IIIª revolução tecnológica chegou, o Fordismo deu lugar ao Toyotismo, a Internet pariu um mundo, os soviéticos sucumbiram, etc., etc.


Marcelo Manzano
[ publicado no Correio Caros Amigos, novembro, 2001]