1.11.03

Da aba dos chapéus e outros desvãos entre o sul e o norte

Suponho que a última vez que estivemos parelhos com nossos vizinhos do norte foi ainda no tempo em que a poeira inspirava o sonho de um mundo a revelar. Aqui e lá, era no cavalo que sujeitos obstinados singravam o tabuleiro de seus continentes rumo ao deus dará. Enquanto a fortuna não vinha, o gado era o meio de vida, e do couro se tiravam as coisas. Nos dois sertões foram comuns o choque com índios, a fé em Deus, a pólvora. Sob a austeridade daquela aventura árida, o cow-boy do faroeste e o cangaceiro do nosso sertão pareciam moedas de uma mesma face.

Coisa nenhuma. Do chapéu fizeram o pórtico de suas idiossincrasias. No cangaço, o couro dobrado em meia lua, acompanhando a linha dos ombros, com medalhas e asteriscos espalhados num espaldar imponente. No faroeste, o couro dobrado no sentido do vento, uma aerodinâmica própria à vastidão daquelas terras, sem cravos, sem brilhos, um chapéu com focinho e pose de vetor.

Num dos raros veículos de que dispunham para expressar suas diferenças, encontramos a senha para dois heróis de destinos tão dispares.

Sob as abas do chapéu do vaqueiro norte-americano, uma ética sem nuanças, um espirito pragmático, incisivo, guiado pelo sonho de um utilitarismo que misturava aos ideais protestantes a miragem de uma racionalidade infalível. Desde aquelas épocas a conquista do paraíso pelos norte-americanos se confundia com a busca por um progresso dos meios, o desvendar e a descrição do funcionamento das coisas como um objetivo em si mesmo. Nesta toada, fizeram e aconteceram e, pelos caprichos da história, transformaram-se na superpotência de hoje. Seus cow-boys ficarão como símbolo do voluntarismo maniqueísta, portadores de verdades, caminhando junto à cavalaria e se confundindo com o poder instituído. O sucesso do homem de Marlboro.

Do lado de cá do equador, sob o chapéu do cangaceiro, pouca sombra, muito brilho, um totem cravado no meio daquele enrosco de mandacaru. No cenário atravancado, onde não se pretende o avanço, mas talvez a fuga, vive-se principalmente de ritos e flores. A honra e o perfume, o sagrado e a altivez do linho branco. Antes daquele monte de metas, no cangaço a vida passa à revelia da bússola, sem saber de tropas republicanas, sem laços com a máquina, nem com o funcionamento das estrelas. Os Yankees esfolavam os índios de dia e à noite fodiam suas damas de saloon. Lampião vinha de braços com Maria Bonita, um raro herói acompanhado de moça, parceira em tudo, nas investidas que aterrorizava os casarios, nos bailes de sanfona e zabumba, no puído da rede.

Alguns dirão que foram estes os males de nosso destino, como se destino fosse assim coisa de apenas uma olhada. Se esquecem do passado colonial, quando a elite ‘brasileira’ rascunhou nosso futuro a partir dos interesses dos sócios majoritários, às vezes a metrópole, muito mais vezes os capitais comerciais e financeiros. Ao contrário dos homens de Marlboro, que voltaram as costas à metrópole, por aqui o país, suas terras e seu povo foram sempre uma extensão dos negócios. Mas aos negócios nunca interessou que se fizesse de fato um país, que se distribuíssem as terras, que se desenvolvesse soberano o povo. Êta destino encruado! Sem o troféu do desenvolvimento, nosso chapéu de cangaceiro virou folclore e pecha de nosso atraso; fizemos vítima o vilão.

E quem poderia dizer, tanto tempo depois, o cavalo passou arreado. Aflitos em montá-lo, parece que pegamos o chapéu alheio. Mas como o vento sopra no sentido inverso, mais uma vez corremos o risco de reduzirmos o país a um negócio para os outros. A altivez do cangaço, a resistência dos homens de Garanhuns, nossas virtudes, nosso saber viver, tudo fugindo das mãos em nome de novos e antigos negócios. Enquanto o cow-boy texano enterra na sua cabeça quadrada seu chapéu imperial, nosso governo titubeia, desfazendo dos brilhos e das estrelas que ostentava quando inflamou uma multidão de gente cansada.

É verdade que alguns se arriscam. O Celso Amorim avisa a todos que temos nosso próprio chapéu, que podemos pensar um país a partir de nossa própria sombra. Temos ainda o Lessa, um teimoso entusiasta preocupado em iluminar o futuro de um Brasil que dá certo. O Gil e sua procissão.

Mas, na cabeça dos quatro cavaleiros da governabilidade, veste-se apenas um parco bonezinho, retrato estilizado da decadência yankee. Sob insípida sombrinha, jogam seu xadrez acabrunhado, uma política autoritária, uma macroeconomia estúpida, uma governança estéril.

Se alguma moral há na história, fica o bordão: mais cangaço e menos cagaço!


Marcelo Manzano
[ publicado na Caros Amigos - novembro, 2003 ]