13.8.02

Pelas Janelas

Seja porque delas se vê a banda passar, seja porque através delas pode-se lançar as tranças, as janelas talvez sejam um dos elementos mais poéticos entre as coisas que nos rodeiam. Entre músicos, escritores e poetas são raros aqueles que em algum momento não se lembraram das janelas, metáforas por excelência.

No Carandiru ou em Copacabana, basta olhar para o lado que sempre encontraremos um tanto de acotovelados, alguns por desalento, uns sonhando com a moça, outros com o vento.

Mas as janelas, assim como a poesia, vão aos poucos perdendo o seu lirismo e seu lugar. A violência das ruas e a tabula rasa do mundo econômico nos ensinam que hoje as janelas são dispensáveis. Hoje não temos tempo para olhar pela janela, é o ladrão quem pula a janela, falta dinheiro para pintar a janela – já não faz muito sentido esta coisa de janela.

Falo das janelas porque acabo de voltar de uma viagem ao interior de Minas e pra todo canto o que mais se via eram aquelas janelas de aço, banhadas de cinza-zarcão, de quatro folhas, duas fixas, duas engastalhadas,... todas cinzas. Repletas de razão, as janelas de lata alastram-se como a peste para os povoados e vilarejos mais distantes.

Quando parti para minha viagem por Minas, fui especialmente interessado em conhecer a cidade de um amigo de meu pai que, entre o café e a pinga, nos contava de sua vida em Luminárias, terra da família “Gorpeia” - protagonista de um famoso acidente de bicicleta onde o Sebastião, descendo distraído pela rua principal, gorpiô pra cá, gorpiô pra lá, mas não evitou a trombada com outro parente embicicletado. Moleque paulistano e ouvindo estas histórias de uma inusitada cidade chamada Luminárias, desde aqueles tempos esperava pela oportunidade de desviar-me da Fernão Dias para conhecer o tal lugar. Seguindo por uma comprida estrada poeirenta, ora amarela, ora avermelhada, cheguei então quase ao final de um dia à pequena Luminárias, cravada entre a serra de Carrancas e a chapada de São Tomé das Letras. E como você já sabe, mas eu sequer imaginava, Luminárias estava toda ela encerrada pelas cinzas janelas de lata. Não parei, não tomei café nem comi queijo. Atravessei pela provável rua dos Gorpeia e segui rumo a Carrancas, atraído pelas suas cachoeiras, mas já sem qualquer ilusão quanto às suas janelas.

E os morretes de Minas, que por força da história e do esquecimento guardavam-nos um gracioso passado colonial, vão aos poucos ganhando a feiura e a tristeza das periferias das grandes metrópoles. Com a modernização industrial e a virulência de um consumo de massas que arrebata todas as camadas da sociedade, em todos os rincões do país, as nuanças culturais e urbanísticas vão sendo borradas, substituídas pela absoluta sem-graceza parafraseada pelas janelas de lata. “Miséria é miséria em qualquer canto, riquezas são diferentes”, sentenciou o bando titã. De fato, à medida em que vamos respirando capitalismo, a pobreza vai ficando cada vez mais parecida, seja em Curvelo, no Jardim Angela ou em Katmandu. E se no passado ser pobre significava apenas estar distante do asfalto ou da luz elétrica, hoje o pobre parece mais um refugo da economia de mercado, um excomungado, irremediavelmente marcado pela impossibilidade de consumo.

A pobreza nos dias de hoje não dói mais só no bolso. À medida que o valor econômico é o único que sabemos reconhecer, quando nos falta a grana, então não reconhecemos valor algum em nossas vidas, nem nas janelas, nem através delas. É curioso como a sociedade, ao inventar o valor econômico como equivalente geral - abstrato - para representar nossos valores concretos (tangíveis ou intangíveis ; a fome ou a beleza), encantou-se com a própria magia e perdeu de vista que a sombra da cadeira, apesar de portadora da idéia-cadeira, jamais nos servirá de fato como cadeira. Incapazes de resistir à racionalidade econômica, nos esquecemos de que a mediação monetária deveria existir apenas para azeitar nosso intrincado mundo de interesses individuais e coletivos. Condenados a traduzir o idioma idiossincrático de nossos desejos para o dialeto monetário que todos entendem, compramos janelas por razões que não as próprias das janelas.

São diversas as seqüelas decorrentes desta idiotia econômica que dá as cartas no mundo de hoje. Contudo, para nosso pesar, é na periferia do subdesenvolvimento que se acumulam os refugos maiores da máquina capitalista. Em Londres, por mais monotemáticas que sejam as fachadas das casas, governo e sociedade reservaram as portas como espaço de resistência às contingências da padronização econômica. “The doors of London” são uma verdadeira instituição para os ingleses, com direito a cartão postal e capa de discos. No norte da Itália, plantações de uvas em escarpas pouco produtivas são preservadas do imediatismo econômico graças à consciência de que a sobrevida de suas vilas e cepas funda-se na idiossincrasia de sua cultura secular.

Pois Minas Gerais deveria dar às suas janelas estatuto de patrimônio cultural e cuidar para que não sejam varridas pela objetividade do bolso. Além das reservas de cal que empalidecem o entorno da cidade de Formiga ou da extração de urânio que solapa a serra de Tiradentes, Minas guarda um tesouro cultural de grande valor, seja para nossa história, seja para o desenvolvimento econômico da própria região que, em muitos lugares, tem no turismo sua principal vocação. Assim como a prefeitura de Parma tornou o parmesão mundialmente conhecido através de um programa de subsídio que estimulava os produtores rurais a deixarem seus queijos envelhecerem nas prateleiras, os governantes de Minas poderiam subsidiar cooperativas de marceneiros por todo o estado para que produzissem aquelas lindas janelas de madeira e tramela a um custo mais baixo do que o das janelas de lata. Ganhariam os marceneiros, ganharia o comercio, o turismo, ganharia o espírito de Minas e teríamos de volta o sol nas salas de Luminárias.


Marcelo Manzano
[ publicado no site da Caros Amigos - agosto, 2002 ]