13.5.01

Apaguem o que eu fiz

E pra não dizer que não falei das luzes, vou passar raspando. Acontece que o apagão do nosso Honoris Causa mais ilustre é uma obra tão singular e tão bem acabada, que não tenho como deixar de dar o meu pitaco.

Mas não quero repetir aqui os trocentos argumentos que contam a história desta tragédia anunciada. Quero só lembrar que, ao contrário do que disseram alguns, o apagão é, antes de qualquer coisa, expressão cristalina da competência indiscutível da equipe de governo em atender os preceitos do modelo liberal de desenvolvimento econômico. Sejamos justos, ninguém mijou fora do penico. Foi tudo feito nos conformes do pensamento econômico "up-to-date". Pode-se vasculhar em Harvard, no Banco Mundial ou no FMI, que não se encontrará grandes divergências em relação ao programa implementado no Brasil nos últimos dez anos. Mundo afora, os financistas palpiteiros citam o "case" brasileiro como exemplo de notável sucesso.

E de fato, do ponto de vista daqueles que gostam de mercados, eles estão mesmo com toda a razão. Como eu disse outro dia, para quem vive chicagueando e andando para o mundo de carne e osso, não há do que reclamar.

Quando no início dos anos 90 começaram a falar das privatizações, se dizia que o Estado não deveria se dedicar à produção de bens e serviços que, na economia contemporânea, se tornaram "commodities". E, como dizem os economistas, commodities são aqueles bens que, por serem padronizados e homogêneos, podem ser comercializados nas principais bolsas de mercadorias do mundo, o que significa que sempre que quisermos poderemos adquiri-los apenas com um telefonema para nosso corretor mais chegado. Noves fora, no admirável mundo novo do liberalismo, em breve poderíamos até mesmo estar comprando energia elétrica do computador de nossa casa. Quase lindo.

Mas vamos imaginar lá um reluzente proprietário de uma empresa de energia, recém privatizada, lucrativa, comprada com ótimas linhas de crédito do BNDES, senta na sua mesa de vidro, abre o jornal e lê que o governo brasileiro está pagando, digamos, 16, 35 ou 92% de juros ao ano (tanto faz) para quem se interessar em comprar títulos da dívida pública. Ou seja, o governo, desesperado para pagar seus compromissos financeiros (é bom lembrar que todas as esferas de governo são superavitárias no Brasil. É verdade!), oferece o suor dos que trabalham e o sono dos que não tem emprego como recompensa gorda aos que se disponham a ceder temporariamente seus cobres aos interesses maiores da nação.

Aí, o tal proprietário, precavido, experiente, acessa no palm top sua consultoria financeira e fica sabendo que, segundo projeções internacionais, o mercado de energia elétrica estima uma taxa de lucro para o setor da ordem de 12% ao ano.

Sem dúvida, uma taxa apetitosa. Só que ele se lembra que está no Brasil e que aqui o governo, sob recomendação do FMI, paga mais para ele ficar com o dinheiro parado.

Sobrancelhas franzidas e com receio de tomar uma decisão precipitada, ele se lembra finalmente que se a energia é mesmo uma commodity, quanto mais escassa, mais elevado será seu preço. É o empurrãozinho que faltava. Desde então ele aplica tudo que pode em títulos da dívida pública.

Assim, se hoje existe uma restrição de oferta de energia, é porque, sob a estrita racionalidade das leis de mercado, a liberalização levada a cabo pela tucanada foi absolutamente competente nos seus propósitos. As empresas que compraram nossas estatais não fizeram nada que não estivesse no script de uma empresa privada: buscar aplicar seus recursos de modo a maximizar sua rentabilidade. E convenhamos, não deveríamos esperar que em um país periclitante como o nosso uma empresa privada decidisse aplicar seus tostões em um investimento de longa maturação como a geração de energia, quando o próprio governo sinaliza com aplicações de alta rentabilidade e boa liquidez.

Já um governo periclitante quanto o vosso, Sr. Honoris Causa,... é melhor que se apague logo.


Marcelo Manzano
[ publicado na Caros Amigos, maio, 2001 ]