13.11.02

De Sereias e Cisnes

A melhor personagem-símbolo da era FHC talvez seja o Curupira. Caminhando como quem vai em direção ao mundo mágico da estabilidade macroeconômica, nos levou à beira da ribanceira. Ao contrário da trajetória habitual dos governos, os tucanos foram aos poucos se distanciando da gloria que os alçou ao poder e depois de muito mercado e muita tinta nos entregam a casa em frangalhos.

Mas entre todos os legados da gestão tucana, entre tantas dívidas, déficits e defaults, o mais pesado parece ser a tutela que os interesses financeiros já impingem ao governo que ainda nem subiu. Derrotados pela realidade dos fatos, sereias e cisnes cantam em uníssono o hino do superávit primário (saldo positivo das contas públicas, sem contar os gastos com juros).

Justo aqueles que tanto fazem para demostrar o quão científica é a economia, desdenham da realidade dizendo que a felicidade da nação será medida pelo tamanho do superávit primário que ela venha a produzir. Não seria talvez o inverso? Nos últimos anos, a despeito de termos produzido importantes superávits, o estoque da dívida do setor público brasileiro só fez crescer, chegando atualmente a inéditos 63% do PIB! E sob o argumento de que é preciso gerar superávits primários capazes de reduzir a relação dívida/PIB, este pessoal se furta em dizer que a monstruosa dívida pública de R$ 885 bilhões é muito mais financeira do que fiscal: é antes decorrência das derrapagens cambiais do primeiro mandato tucano e das estratosféricas taxas de juros praticadas pelo Malanismo.

Somente o profundo encilhamento de idéias ocorrido nos anos 90 é capaz de explicar tamanha desfaçatez para com as esperanças reveladas pela eleição de outubro. Superávit primário é piada de mau gosto. Como lembra a economista Sulamis Dain, a rigor, não se deveria falar em superávit, mas sim em contingenciamento de gastos sociais, associado a um vigoroso aumento da incidência tributária sobre o setor produtivo. Deste ponto de vista, portanto, os tais 3,88% do PIB ou os mais de 50 bilhões de reais que o setor governamental deverá “poupar” neste ano de 2002 nada mais serão do que a soma dos recursos deliberadamente desviados do Orçamento da Seguridade Social (direito constitucional consagrado em 1988), agregados às contribuições sobre o faturamento das empresas que, em última instância, aprofundam ainda mais a crise social através de seus impactos sobre o nível de emprego.

Mas a insanidade local é tamanha que até mesmo banqueiros internacionais (como Michael Pettis, no jornal “Valor” de 31/10) começam a relativizar o uso do superávit primário como senha para agradar o mercado: primeiro porque não será através do sacrifício fiscal que reduziremos a relação dívida/PIB e, segundo, porque a crise de liquidez internacional e a crescente aversão ao risco tornam ineficazes nossas demonstrações de bom mocismo. Nas surpreendentes palavras do professor-banqueiro “o novo governo não deve dar muita atenção ao conselho de banqueiros sobre como recuperar a confiança do investidor estrangeiro. Tentativas de atraí-los de volta provavelmente serão frustrantes, sejam quais forem as políticas escolhidas por Lula”.

Paradoxalmente, na falta de alternativas e sem poder contar com os regalos estrangeiros de outrora, abre-se ao governo do PT a possibilidade inédita de reestruturar a dívida como única forma de evitar o colapso e livrar-se de uma vez por todas da obsessão dos superávits primários. Dívida por dívida, foi para reduzir a social que votaram 52 milhões de brasileiros.


Marcelo Manzano
[ publicado no Correio Caros Amigos - novembro, 2002 ]

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