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Casa da mãe Joana

O jornalismo econômico, principalmente aquele que fala para o grande público, adora comparar a economia de um país à economia doméstica. Quantas vezes já não ouvimos algum respeitável analista recomendar que os governantes façam como as donas de casa e não gastem mais do que têm em caixa?

Grande bobagem. Esta analogia, além de pobre, é extremamente infeliz, pois induz a aceitar como verdadeira uma idéia pra lá de equivocada sobre o funcionamento da economia. A lógica que rege as finanças públicas não só é diferente da que rege a economia doméstica, como muitas vezes funciona no sentido inverso.

Enquanto as donas - ou os donos - de casa queimam seus neurônios para conseguir o máximo de satisfação (um sofá novo, o conserto do pará-choque, o CD do Xitão, etc..) com o menor custo possível (o minguado salário), o Estado tem como meta a promoção do bem estar do conjunto da sociedade. Não faz sentido pensar em bem estar ou satisfação do próprio Estado, pois suas ações, ao contrário dos setores privados, só têm razão de ser se extrapolam os seus próprios limites. Por isto, também não tem cabimento querer que princípios como o do lucro ou da eficiência microeconômica venham pautar as políticas públicas.

Antes de mais nada, a ação estatal deve ser entendida como um poderoso instrumento de promoção e de defesa dos interesses comuns dos vários segmentos representados pelo Estado.

Mas para pensar melhor sobre esta questão, vale a pena gastar um pouco de tinta com um rápido exercício de contabilidade. Imaginemos que a economia de um país se divide entre dois setores: o público (governo) e o privado (empresas e famílias) e que, somando a renda destes dois setores, temos a renda total gerada no país (que é também chamada de PIB).

Se, ao final de um ano, o setor público conseguir poupar dinheiro (obter superávit), necessariamente o setor privado deverá apresentar prejuízo (déficit).

Em outras palavras, em tal situação, o setor privado teria transferido renda para o setor público, que, portanto, teria gasto menos do que arrecadou - o que provocaria uma restrição ao crescimento da economia do país.
Inversamente, se o governo tem déficit (prejuízo) - isto é, gasta com produtos, serviços e salários mais do que arrecada com a cobrança de impostos e tarifas - significa dizer que sobram recursos no setor privado. Nesta situação, a economia, oxigenada pelo déficit público, tende a apresentar maior capacidade de crescimento.

Do ponto de vista liberal-platônico, o ideal seria que houvesse sempre equilíbrio entre os setores público e privado, desde que o Estado se limitasse a um tamanho mínimo e se restringisse a zelar pelo bom funcionamento dos mercados privados. Entretanto, como temos sentido na pele, os liberais não titubeiam em recomendar que, em caso de países torpes como o Brasil, deve-se antes produzir com sacrifício e resignação saldos positivos nas contas públicas - como forma de honrar os imaculados compromissos que temos com nossos credores externos.

Além disso, desta perspectiva, 'certidões negativas de débito' que atestem nosso bom comportamento serão sempre agraciadas com reluzentes promessas de entrada de capitais estrangeiros no porvir.

Mas para muita gente séria e bem pensante, embora não muito ouvida nestes últimos anos, a economia de mercado não carrega no bolso o segredo do sucesso, nem do bem estar geral. Pelo contrário, quando caminha por suas próprias pernas, o capitalismo segue sempre, direto e reto, para graves crises, devastando tudo que encontra pela frente (o sofá, o pára-choque do carro, o salário e tudo mais).

Como mostra a história, a melhor forma de se proteger da violência produzida pelas tensões do sistema capitalista têm sido a participação ativa do setor público na condução da economia.

Através de seus gastos, o Estado é capaz de mobilizar um tal volume de recursos que garante o que os economistas chamam de "demanda efetiva", peça fundamental para manter embalada a bicicleta do crescimento econômico. Na medida em que o orçamento estatal é utilizado para comprar uma grande quantidade de produtos e serviços, empresas e famílias são estimuladas a investir e consumir. Consequentemente, o crescimento econômico se torna mais vigoroso e estável ao longo do tempo. Portanto, nesta lógica, o déficit público não só deixa de ser um problema econômico, como se torna instrumento poderoso na promoção do desenvolvimento.

Mas, afinal, quem será que paga pelos tais déficits públicos? Pois é, justamente aí é que a economia de um país é muito diferente da economia lá de casa.

Enquanto nós, cidadãos comuns ou empresas, damos adeus às notas de reais a cada vez que fazemos uma compra, o governo, ao contrário, reembolsa parte do que gasta, visto que os reais que ele introduz na sociedade, na medida em que circulam pelos mercados, são usados também para pagar impostos e tarifas.

Por exemplo, quando o governo paga o salário de um de seus funcionários, e este atravessa a rua para comprar cigarros, deixa no bar da esquina um tanto de dinheiro correspondente ao imposto embutido no preço do maço. Pouco tempo depois, este mesmo tanto estará sendo depositado na conta do governo pelo fabricante de cigarros. Assim, a cada 100 reais gastos pelo governo, uma parcela considerável, 10, 20 ou 40 reais - conforme o caso - retornam para os cofres públicos.

Além disso, uma outra vantagem que o governo leva em relação à dona de casa é que ele é capaz de usar o déficit público para induzir um crescimento da economia que, no período seguinte, permita a ele ampliar a sua arrecadação - e, assim, saldar parte da dívida acumulada anteriormente.

Por estas razões, portanto, a persistência dos déficits públicos não acarretam, a princípio, nenhum problema de maiores proporções para o Estado ou para a sociedade. Algumas vezes, os déficits precipitam pequenas oscilações da inflação; em outras, levam à necessidade de buscar financiamento externo. Mas com certeza estes males são muito menos graves do que o desemprego crônico, a estagnação e o empobrecimento que resultam das políticas liberais de enquadramento e redução do setor público.

O Estado, por seu porte e sua força, tem sido até os dias de hoje o único agente na sociedade capaz de fazer e acontecer, isto é, capaz de estabelecer metas e concretizá-las através de suas próprias ações. O mercado, coitado, é, por natureza, medroso, fragmentado e dotado de irremediável espirito de 'maria-vai- com-as-outras'. Se não for estimulado ou até mesmo obrigado a seguir em determinada direção, prefere correr atrás do rabo, especulando em negócios menos arriscados e mais rentáveis do que a produção - como, por exemplo, apostar contra as moedas de paisecos da periferia.

Quem tem com o que especular, é obvio, não vê mal algum em que o mundo siga girando em falso enquanto enchem seus bolsos. Já quem não tem nada além do salário e o suor do rosto, é bom pensar seriamente na importância de fortalecer o Estado e estar atento a quais políticas favorecem ou não a produção e o crescimento da economia. Nestas questões, engrossar o coro do adversário pode ser bastante desagradável, pois se existe alguma relação entre a economia doméstica e a economia de um país, é que o tamanho dos salários, tão importantes lá em casa, será tanto menor quanto maior for o superávit do governo.


Marcelo Manzano
[ publicado na Caros Amigos novembro, 2000 ]