2.12.00

Juros por Deus

Alvíssaras! Entre mortos e feridos, os partidos de esquerda em geral - e o PT em particular - foram os grandes vitoriosos das últimas eleições municipais. A expressiva vitória em importantes centros urbanos de todo o país aponta para um crescimento sólido do eleitorado de esquerda e um amadurecimento de suas propostas administrativas.


Contudo, a maioridade provavelmente será árdua. Pela frente, a esquerda terá que governar algumas centenas de cidades falidas, engessadas pela lei de responsabilidade fiscal - que impõe rígidos limites aos gastos sociais e deixa brechas para aumento dos gastos com encargos financeiros.

E é aí que a porca torce o rabo. Para lograr algum êxito nas futuras administrações municipais, a esquerda deverá ter a coragem de questionar com firmeza a legitimidade da dívida pública que se multiplicou em estados e municípios graças à desastrosa política econômica implementada pelo governo do Sr. Fernando Honoris Causa.

E antes de engrossar o coro dos austeros (e incorrer no erro de praticar uma política conservadora e muito pouco distinta do social-liberalismo tucano), devemos trazer para o debate as causas que levaram à falência generalizada do setor público brasileiro nos anos 90. Por que será que União, estados e municípios, a despeito de acumularem superávites primários (gastarem menos do que arrecadam), assistiram um crescimento explosivo de suas dívidas?

Ora, certamente os donos do poder e seu séquito de banqueiros-economistas diriam que foram as contingências da crise asiática que nos forçaram a elevar as taxas de juros. Sem alternativas, tivemos que pendurar os juros nos céus, o que, lamentavelmente, teria pego de calças curtas todos os devedores da economia brasileira (entenda-se: os três níveis de governos, cidadãos e empresas).

Às favas!!! Em nome de um suposto "novo paradigma de desenvolvimento", os doutos deste governo, aboletados serenamente em suas consciências (digo... bolsos), abdicaram do que nos restava de soberania econômica. Para patrocinar a farra do consumo do início do Plano Real, e encher de quinquilharias importadas este Brasil varonil, o séquito encantou o mundo ao oferecer-se com taxas de juros que chegaram a 150% ao ano.

Portanto, não venham chorar as pitangas, jogar a culpa em tailandeses ou coreanos. O pesado ônus (os juros) que pagamos - e que pagaremos por um bom tempo - se deve exclusivamente ao fato de termos entregue o destino de pessoas de carne e osso a uma lógica financeira que, invariavelmente, favorece os credores (donos do dinheiro) e ferra os devedores (donos da carne e dos ossos).
Explico-me - não sem antes pedir licença para lembrar de uma passagem de Guimarães Rosa.

Em determinada altura de uma determinada história, dois sujeitos (mineiros) negociam um boi. De um lado, o suposto vendedor, tranqüilo e desinteressado, elenca tantas qualidades de seu boizinho que, para dizer a verdade, ele mesmo nem sabe por que quer vendê-lo. Por outro lado, o suposto comprador, tão tranquilo e desinteressado quanto o primeiro, elenca tantos defeitos no boizinho alheio que, para dizer a verdade, não sabe se quer comprá-lo. Depois de muita prosa, enfim, como não poderia deixar de ser, negócio fechado e o boizinho, ruminando, troca de dono.

Pois é, esta singela parábola da cultura cabocla é das mais ilustrativas para entendermos as leis que regem a lógica dos mercados. Num mercado, seja ele qual for, tão importante quanto possuir bens para a troca (oferta) ou anseio e condições para adquirir outro bem (demanda) é que cada parte possa abdicar - sem qualquer ônus - de concretizar o negócio. Se, no embate entre vendedor e comprador (oferta e demanda), uma das partes se vir obrigada a levar o jogo às últimas conseqüências, a troca estará condenada ao desequilíbrio e o fim do jogo se dará no limite do possível, i.e., em favor daquele que, a qualquer momento, possa desistir da transação. Ou seja, para que o jogo do mercado funcione, é importante que ambas as partes consigam ao menos dissimular o interesse que têm pela concretização do negócio.

Pensemos então o que ocorre nos mercados financeiros internacionais, onde um dos negócios mais abundantes e rentáveis é a compra e venda de títulos de dívida pública (papeis que os governos vendem ao mercado prometendo recomprá-los depois de um período "x", pagando um preço superior ao que foi vendido inicialmente). Nestes mercados, o preço da mercadoria a ser vendida (título de dívida pública) é que denominamos "juros" (ou de outra maneira, o "juro" é o quanto o dono do dinheiro cobra para abrir mão do poder de compra representado por aquela quantidade de dinheiro).

Grosso modo, na vida como ela é, endinheirados do mundo todo (governos, empresas, famílias, traficantes e o escambau) reunidos em alguns poucos bancos e fundos de investimento, espreitam por boas oportunidades para aplicar suas poupanças. Para auxiliá-los, empresas de avaliação de risco, fieis escudeiras da moral e dos bons costumes capitalistas, sediadas em Washington, Londres ou Singapura, oferecem em tempo real um ranking dos bons e dos maus pagadores. Do lado de lá, na outra ponta do mercado, governos quebrados, oportunistas ou iludidos, ávidos por recursos (geralmente dólares) acotovelam-se em leilões de títulos, verdadeiras bacias das almas. Sem a possibilidade de recuar ou dissimular sua sede (como recomenda a sabedoria caipira), representantes de países de toda a estirpe lançam-se então em uma corrida fratricida para ver quem oferece o maior prêmio (juros) aos pacatos donos do dinheiro. Então, no que chamei antes de 'limite do possível' - o ponto extremo em que a parte que menos pode (aquela que não tem como desistir) é a que mais geme - bate-se o martelo.
Pá!

E, como sabemos, lamentavelmente o Brasilzão, 8ª economia do planeta, terra do futebol e da esperança, em nome da modernidade, foi o país que chegou mais longe neste jogo de uma nota só (o dólar). Nós, representados pela equipe do Sr. Malan e do Sr. Gustavo Franco, chegamos a oferecer 250 dólares para cada 100 dólares emprestados por um período de um ano. Poucos negócios nestes mundão capitalista foram tão lucrativos quanto os títulos da nossa dívida.

Mas o grave desta brincadeira não é só isso. Como esta elevação das taxas de juros se deu após um período de desmedido endividamento do setor público (vale dizer, fruto de política deliberada das autoridades econômicas na chamada 'lua-de-mel do Real') a divida pública brasileira, que já estava bem crescidinha, explodiu.

Então imagine-se lá, a situação do senhor prefeito de Cuiabá, de Campinas ou de qualquer outro município brasileiro. Acompanhando esta alta dos juros - controlados pela união - as dívidas que as prefeituras carregavam com fornecedores, bancos, governo estadual e governo federal, etc., assumiram proporções inauditas.

E o que é que recomendam os economistas oficiais?
- Sr. Prefeito, Sr. Governador, os Srs. vão ter que controlar este ímpeto populista e limitar-se a gastar somente o necessário: x% com o funcionalismo; y% com a saúde; tanto com o judiciário, e, bem, tanto com a dívida pública, que tem que ser honrada independente de qualquer coisa.

Será?

Será que é legitimo restringir os orçamentos públicos em nome de uma dívida que foi fermentada por taxas de juros determinadas, em última instância, neste jogo sem lei dos mercados financeiros? Será que é razoável ancorar a carne e os ossos de tanta gente num indicador chamado juros, que será tão mais alto quanto maior for o número de países necessitados e quanto pior a condição destes países?

Os juros não são fruto da natureza, nem um parâmetro das ciências exatas que sirva de medida das relações de mercado. Os juros, na sua atual forma desregulada e frouxa - como tanto queriam os liberais - são, antes de qualquer coisa, expressão das enormes desigualdades entre países e entre classes sociais.

E é bom lembrar que entrar neste jogo de cachorro grande, sem ter como sair, foi uma opção autônoma do governo FHC. Muita gente boa, taxada de dinossauro, de populista ou de turma do nhen-nhen-nhen, alertou desde o início para os riscos da via liberal. Mesmo depois da crise estourar em meados de 1997, poderíamos ter corrigido os rumos da política econômica, como o fizeram com sucesso outros países (por exemplo, a Malásia, a Coréia do Sul ou o Chile)

A força política revelada pelos partidos de oposição na últimas eleições parece indicar que parte do eleitorado brasileiro acredita na viabilidade de um projeto econômico e social alternativo a este que vivemos. À esquerda, caberá agora a difícil tarefa de colocar o país rumo a um desenvolvimento menos subordinado aos interesses dos países centrais e com condições de reduzir o enorme atraso social em que estamos metidos. Resta saber, contudo, se, a partir do poder municipal, os governos da esquerda terão a ousadia de peitar de frente a herança destes tristes anos de liberalismo.

Fazer a faxina e conferir os canhotos no final do mês é, por certo, obrigatório e recomendável, mas se o que queremos é reduzir a insuportável desigualdade que avança em nosso país, então teremos que tirar os esqueletos do armário e combater os meandros econômicos pelos quais os endinheirados fazem rir suas famílias enquanto esperam tranqüilos pela próxima batida do martelo.

Marcelo Manzano
[publicado na Caros Amigos dezembro, 2000]

1.12.00

Ponto sem nó

Economia de mercado. Infelizmente é sob esta rubrica de mau gosto que o nosso mundo azul encerrou o século 20. Gostemos ou não, o fato é que apesar da estúpida injustiça social que marca os dias de hoje, um mar de gente esfolada, fodida e mal paga, continua dando sangue para sustentar na crista da onda o barquinho dourado de um punhado de bem nascidos.

Mas como é que pode? Como é que um sistema tão desigual e desumano como o capitalista se mantém de pé por tanto tempo?

Muita saliva e muita tinta já se gastou sobre o assunto, mas, apesar disso e do risco, peço licença ao leitor para meter minha cunha na conversa.

Antes de incorrer na tentação cômoda e moralista de enxergar o sistema capitalista como uma criação maquiavélica daqueles que carregam as chaves do cofre, devemos talvez pensá-lo como expressão suprema de uns tantos valores tidos como intocáveis pela gente contemporânea. A meu ver, a surpreendente sobrevida da economia de mercado não pode ser bem compreendida se não atentarmos para a obsessão que nós, viventes de esquerda ou de direita, temos com ideais como o da Racionalidade ou da Liberdade.

Os ares do Iluminismo e da Revolução
Burguesa, que oxigenaram as cabeças e a vida dos tataravós de nossos
avós, condensaram-se ao longo dos anos em nuvem espessa e hoje se
precipitam como ideais tacanhos do liberalismo econômico. O tal
mercado é a síntese perfeita desta hipertrofia iluminista. Em nome
do homem e para o homem, desenvolvemos uma espécie de
"máquina" auto-regulada (a tal mão invisível) onde o
homem não tem lugar, nem sentido. Apesar da promessa grandiloqüente
de um mundo melhor, de mais prazer e menos dor, os nobres princípios
da razão e do livre-arbítrio, que tanta marola fizeram há alguns
poucos séculos, reduziram-se a um conjunto de condutas mesquinhas
que, na lógica do utilitarismo capitalista, tornam-se desumanas e
contraditórias.


Ora, mas é mesmo tudo muito estranho.
Quem diria que a qualidade da Razão, marca primeira de nossa espécie
e de que tanto nos gabamos, terminaria seus dias reduzida a mera
habilidade de distinguir o caminho mais curto (menor custo/dor) para
se alcançar um determinado objetivo (maior lucro/prazer). Sob o
prisma do funcionalismo deterministas que pauta nossos tempos, a
Razão ganha estatuto de sexto sentido, capaz de processar em tempo
real cálculos de custo-benefício que, supostamente, nos levarão ao
paraíso.

Pois de certo perdemos o senso. O
'cálculo econômico', que se alastra para além dos limites da
produção e contamina quase todas as esferas de nossas vidas, antes
de nos capacitar para o livre-arbítrio ou para o desfrute de nossa
condição humana, nos impele ao terrível funil da inexorabilidade
científica. Trajetórias ótimas, ações maximizadoras, que puta
sufoco! O tal 'cálculo econômico' e seu determinismo autoritário
são muito mais opressivos e eficientes do que qualquer Deus, Stalin
ou outro Grande Irmão que tenha reinado no passado.

E a despeito das infinitas variáveis
que adicionamos às equações, do número de eixos e semi-eixos que
cortam nossos gráficos ou da flexibilidade adaptativa que compõem
nossos métodos, o que nos distingue de um rato ou de um hipopótamo
é, ainda, a coragem de peitar nossa própria natureza. O pobre rato
não faz nada que contrarie seu roteiro darwinista. Cada passo, cada
mordida, cada trepada que dá, será, sempre, apenas mais um ato
triste de uma vida rigidamente controlada pela racionalidade de seu
instinto de sobrevivência. E economicamente falando, portanto, os
ratos, as amebas ou os leões são, certamente, muito mais 'racionais'
do que qualquer um de nós.


A graça de nossa condição humana, o
grande barato de nossa vida mundana está na possibilidade de
inventarmos enredos que não fazem sentido a priori. O apito que
atravessa o samba como no "país tropical" de Jorge Ben, a
gagueira de uma cuíca, as arranhadas de Jimmy Page ou o brusco tombo
no ritmo repetitivo de "I want you", dos Beatles, são
expressões agudas do espírito libertário que habita a razão
crítica e 'verdadeiramente' humana.

Ou será que há funcionalidade ou
qualquer atitude maximizadora que explique uma bela overdose ou um
tiro na têmpora, em nome daquela morena que um dia dormiu molhada ao
meu lado. Se há algo que realmente nos separa do mundo animal,
suspeito que seja a possibilidade de nos retirarmos de cena, de fugir
do contexto ou de habitar utopias. A abstração científica é
certamente um traço de nossa humanidade, porém menos como método do
que como arte. Uma catedral pontiaguda, uma sintética expressão
matemática, um discurso de Churchil ou um grito risonho da Elis
Regina, valem tanto quanto o bife que minha avó fritava com quiabo,
visto que não há equivalência possível, e muito menos razão para
buscá-la.

Curiosamente, no capitalismo, os
anéis, os charutos, os pára-choques de prata e todos os símbolos de
pompa e luxo que o alimentam, são ícones da irracionalidade e da
exuberância que todos buscamos. Aliás, talvez o grande erro da
esquerda no século vinte foi ter menosprezado a força destes ideais
na mentalidade contemporânea. A opção pelo 'pobrismo' e a crença
no trabalho não contaram com a popularidade esperada pelo socialismo
científico.


Por outro lado, apesar de sinalizar
com o ócio e a esbórnia consumista, a lógica crescentemente
alienante e funcionalista do capitalismo tem produzido o utilitarismo
mais chinfrim de que se tem notícias. A idéia de consumir, que
originalmente poderia sugerir um ato de deleite ou de exuberância
(como era para os deuses gregos ou astecas), ganha o significado de
uma função-objetivo onde, ao final do processo, há de se mensurar
algum benefício. Obcecados em descobrir a utilidade de cada ato de
consumo, freqüentemente nos perdemos, sem saber qual é o
"metro" que mede nossa satisfação. Será bom mesmo este
vinho? Serão bonitas as lanternas do novo carro? Gostei mesmo do
filme iraniano? E o bife com quiabo, estava gostoso? Será que gosto
de cachorro? Estou com frio? Sou louco? Sou eu?

Mas, se é que estamos loucos (quem
poderá dizê-lo), não parece muito razoável jogar a culpa,
mecanicamente, no funcionamento do modo de produção capitalista.
Como farejou a geração dos anos 60, a angústia e a miséria de
nossa sociedade são frutos, antes de qualquer coisa, da maneira
acabrunhada e conservadora com que conduzimos as bandeiras do
iluminismo. E se hoje o capitalismo triunfa cruel e injusto, é
porque, mesmo sendo desigual do ponto de vista econômico e social,
nutre e é nutrido de uma sociedade fascinada com o desenvolvimento de
um aparato racional que promete automatizar a nossa insensata busca
pelo prazer.

Benção Vó!

Marcelo Manzano
[publicado na Caros Amigos, dezembro, 2000]