1.6.03

Eles usam black tie

Tudo o que deveria ser dito sobre a insensata política monetária da dupla Palocci- Meirelles já foi dito. Após quatro meses de paciência e trégua em nome da governabilidade, é quase unanime entre os analistas a opinião de que a ortodoxia passou dos limites – a exceção evidentemente fica por conta dos executivos do mercado financeiro.

Mas, para além dos estragos provocados pelas taxas de juros penduradas na cumeeira e pelos superávits fiscais mais-que-perfeitos, o que preocupa na política econômica do governo é que, na sua sanha positivista, ela joga por terra toda uma construção teórica alternativa que desde a escola cepalina vem subsidiando as esquerdas na crítica à ordem liberal e na proposição de um desenvolvimento econômico singular, isto é, que leve em conta as peculiaridades de nossa industrialização tardia. Em outras palavras, a desfaçatez com que o governo trata o debate de fundo sobre o modelo econômico em que estamos metidos, esvaziando de legitimidade um dos principais esteios de sua própria história política, produz um perigoso vácuo de alternativas que nem a queda do muro nem a mente de Mrs. Tatcher tinham sido capazes de impor ao Brasil.

Nas estrelinhas das falas do Ministro da Fazenda e, talvez, até à revelia de sua consciência, transbordam referências à uma semântica econômica que remete ao mais estrito conservadorismo. As metáforas de um organismo na UTI que não pode ter seu tratamento interrompido escancaram a adesão a uma concepção do mundo econômico onde a ordem e o equilíbrio parecem ser o desfecho natural da dinâmica capitalista. Ora, desde que o médico Quesnay concebeu a economia como um organismo cuja harmonia dependerá do pleno funcionamento das suas partes, muita água já passou por debaixo da ponte. Autores como Marx, Keynes e Schumpeter gastaram seus tutanos para demonstrar que no capitalismo o desequilíbrio e a instabilidade são a regra e, consequentemente, é a partir deles que se deve pautar a política econômica.

Quando o governo se apresenta como conservador na política econômica e progressista na área social (ordem e progresso?), desdenha de sua razão de ser, correndo o risco de se inscrever na história como a pá de cal sobre um longo esforço de desconstrução do discurso econômico dominante. E este sim é um risco de implicações de fato muito mais deletérias do que as circunstâncias econômicas de curto prazo, sempre passíveis de reversão. A capitulação do PT ao liberalismo econômico é grave porque simbolicamente representa o fracasso de uma alternativa que sequer foi testada, e que poderá ficar marcada injustamente como mera retórica oposicionista. Ao persistirem na cegueira conservadora, além de estarem nos conduzindo ao degredo econômico, os timoneiros da área econômica estarão finalmente dando vida ao pensamento único, que até a chegada do PT ao poder não se efetivava justamente porque, na oposição, o PT representava uma alternativa concreta à unanimidade liberal.

Infelizmente, os ditos “radicais” do partido, dos quais poderíamos esperar este resgate de um modelo alternativo de desenvolvimento, encerram-se nos mesmos limites de incompreensão do funcionamento do capitalismo contemporâneo. Assim como a cúpula que hoje os trai, os “radicais” tem sua militância política fundada apenas na negação do capitalismo. Perdem-se acusando o PT de se desvirtuar de sua missão histórica através de suas alianças com o PL do vice José de Alencar ou com o neo-companheiro Sarney, e esquecem-se de observar que estes dois, por exemplo, são hoje muito menos ortodoxos, em seu pragmatismo econômico, do que os puro-sangue do partido. Esses, agora, em seu casuísmo tático, transformam-se em defensores de um modelo de organização da economia que coloca o Estado a serviço dos rentistas, à custa do emprego e dos tributos de um mar de mal nascidos.

Marcelo Manzano
[ publicado no Correio Caros Amigos - junho, 2003 ]