30.4.02

FMI de linha

Assistindo às reportagens sobre a Argentina, me vem à cabeça aquela letra dos Titãs: miséria é miséria em qualquer canto, riquezas são diferentes.

Infelizmente, nossos vizinhos platinos nunca foram tão parecidos conosco como atualmente. Vendo as imagens da periferia de Buenos Aires, pela primeira vez achei a Argentina parecida com o Brasil, não o Brasil de Itapuã ou Copacabana, mas aquele do Jardim Angela ou de São Gonçalo.

E entre tantos dramas de escassez e pobreza, entre famílias repartindo asas de frango e mulheres grávidas pedindo esmolas, o que mais me chocou foi um programa de televisão, ao estilo "show do milhão", onde dois desiludidos engenheiros desempregados disputavam uma vaga de vendedor, respondendo a perguntas sobre a "indústria siderúrgica".

De um lado, um jovem de 29 anos com a mãe, a esposa e outros familiares de sorriso amarelo torcendo pelo engenheiro de futuro incerto. De outro, um senhor de 51 anos, vestido elegantemente como tanto gostavam os portenhos, expondo em cadeia nacional o drama de um pai que não tem como manter a casa. E diante de uma claque desfalcada, o apresentador não escondia o constrangimento de seu inusitado concurso.


Quem diria, um povo que até outro dia orgulhava-se - com toda a razão - do padrão de vida europeu, da fartura de sua alimentação, dos bifes de chorizo e das livrarias abertas até a madrugada, chegar a uma situação lastimável como a revelada por este esdrúxulo programa de televisão. À parte a absoluta sem-graceza do tema (a industria siderurgica), é chocante ver dois representantes de um povo conhecido por sua altivez, sujeitarem-se em canal aberto a um concurso que oferece como prêmio nada além do que aquilo que no passado recente era tido como direito de qualquer cidadão: um emprego.


No fundo do poço, não se trata mais de oferecer um milhão, 200 mil, uma casa ou um carro do ano. Transtornada pela crise, a sociedade argentina sonha apenas com a possibilidade da sobrevivência, a chance de conseguir manter-se por mais algum tempo com a água abaixo do pescoço.


Lembrando da expressão do sociólogo Fernando Henrique Cardoso (em seus repentes oposicionistas), as alternativas em jogo são apenas duas: ser explorado ou entrar para o time dos "inexploráveis", aqueles que não tem lugar em nenhum mercado, nem mesmo o mercado de trabalho.


Por fim, é bom lembrar que, ao contrário do que divulgam os grandes meios de comunicação brasileiros quando tratam do drama argentino, a terra arrasada em que se transformou este nosso ex-ilustre vizinho deve-se única e exclusivamente às receitas ortodoxas impostas pelo FMI. Engessada por uma política cambial que a obrigava a buscar dólares nos organismos internacionais, durante dez anos a Argentina foi obrigada a rezar na cartilha do liberalismo radical dos mercados financeiros, sacrificando a sua população e comprometendo seriamente a capacidade financeira do setor público,


Curiosamente, entretanto, no Brasil quando se fala das causas do desastre argentino, ainda prevalece a ladainha de que este se deve principalmente ao populismo e à irresponsabilidade fiscal do governo De la Rua. Brincadeira! O grande erro de Dela Rua foi justamente o de não ter tido a ousadia de enfrentar as exigências "moralizantes" do FMI e não ter rompido com a receita asfixiante de cortar gastos públicos para girar empréstimos com o mercado financeiro.


E se poucas alternativas restam a Argentina, quem sabe ao menos o seu drama nos sirva de lição e nos dê coragem para romper com a trajetória suicida desenhada pelos arautos do liberalismo, sejam eles endinheirados banqueiros ou meros analistas televisivo de ma fé e bolsos gordos.

Parodiando os Titãs, miséria é miséria em qualquer canto, saídas são diferentes.


Marcelo Manzano
[ publicado no Diário do Litoral - 30/04/2002 ]