13.6.01

Bola Parada

Mais do que a mirrada bolinha que nossa seleção tem mostrado, o triste destes nossos tempos é ter que ouvir declarações como as do ex-técnico Emerson Leão que, na última derrota para a França, afirmou que, não fossem os lances de bola parada, o placar poderia ter sido outro.

Ora, por supuesto, ilustre goleiro. No futebol, assim como na vida, não fossem alguns fatos, poderiam ocorrer outros tantos fatos, que levariam a resultados diferentes dos que de fato ocorreram. Até aí... morreu o Neves. Fato é fato, gol é gol e trave é trave. Vicente Mateus que o diria. E o Leão deveria ter enfiado a viola no saco e nos poupado de tamanha asneira.

Mas o que de fato nos revela esta, digamos, parábola leonina, é um certo viés racionalista que toma conta do que se chama hoje de "camadas gerenciais".

Acuado por microfones do mundo todo, o que o técnico Leão quis dizer é que o jogo desviou-se do que deveria ter sido em função de alguns lances fortuitos, extrínsecos ao esquema de jogo que ele havia montado.

E freqüentemente vemos argumentos deste mesmo tipo pipocarem na boca das tecnocracias que ocupam hoje o poder federal. O baixo índice pluviométrico, assim como as bolas paradas, irrompem no cenário como meteoritos non gratos que, desafortunadamente, desmancham o roteiro e nos levam à desgraça.

Alias, não por acaso, a imprensa governista, assustada com a perspectiva de a oposição vir a assumir o planalto, começa a dar forma a um novo discurso que certamente irá pautar o debate até a próxima eleição. A despeito dos apagões, do pífio crescimento econômico ou da irresponsável sangria de divisas que marcaram estes anos tucanos, já não são poucos os que começam a dizer que não é o modelo liberal que está errado, mas sim sua implementação que foi equivocada. À medida que a discussão sobre a crise energética foi se depurando, ganhou força entre o "esquadrão de salvamento" um conjunto de teses que, em última instância, buscam imputar a falha homérica do governo FHC a "acidentes de percurso" derivados da aliança com o PFL ou do espírito pouco "pró-ativo" do presidente - ou seja, as benditas bolas paradas, inesperadas e indesejáveis.

Mas, se no caso do futebol é menos grave, embora patético, recorrer às "bolas paradas" para explicar os descaminhos do modelo, não podemos admitir que a falência econômica e social que avança em nosso país seja tratada como um efeito colateral de uma série de acidentes de percurso, fruto de alguns tropeços na condução do tal modelo.

Ao contrário do que gostariam os liberais, o mundo econômico jamais foi liso, redondo e harmonioso como pregam em suas teorias simplistas. O capitalismo também é uma caixinha de surpresas. Assim como o futebol e tudo o mais que envolve gente, é marcado pela incerteza, pelas bolas na trave, pelo impedimento que não existiu ou pelo apito do juiz ladrão. O papel de um bom governante, de um bom técnico de futebol ou de um eficiente gerente de empresas é justamente o de intervir na realidade de tal forma que os lances aparentemente fortuitos sejam considerados como parte da dinâmica do jogo e assim possam ser revertidos de acordo com o objetivo que se esteja buscando.

Dizer que a economia, por seu bel-prazer, nos levará aos céus, é no mínimo, de uma falta de humor danada. Como demonstra a história recente, a crença de que não se deve intervir nas "leis naturais" do mercado, pois o livre jogo entre oferta e demanda seria a forma mais eficiente de se promover o desenvolvimento, tem levado a desastres de sérias proporções. Seja nas cercanias escuras de FHC, seja na Califórnia do silício e sem energia ou no Reino Unido das vacas loucas, a ausência do Estado começa a se fazer sentir de forma cada vez mais dramática.

Cega, ou se fazendo de besta, a tucanada limpinha vem agora propor que se salve o modelo e se rifem alguns caciques que, ademais, já chegam ao ocaso. A ACM, reserva-se a Costa do Sauípe, a FHC, uma representação diplomática em Genebra. Ao resto da nação, doses cavalares de mais liberalismo: Banco Central independente, ingresso na ALCA e muita lenha.


Marcelo Manzano
[ publicado na Caros Amigos, junho, 2001 ]