13.9.01

O crash-crash de Nova York

"Não sei o que torna o homem mais conservador:
conhecer apenas o presente, ou apenas o passado"

John. M. Keynes, "O fim do laissez-faire" (1926)


A nova função de secagem da máquina de lavar; o olho lindo da menina de turbante; a ração da gata; o tigrão do sucrilhos; a areia... De uma hora para outra, as coisas deram para abrir a boca, os sentidos bateram em revoada.

Vai entender! Aqui, mataram o prefeito de minha cidade, na CNN outros voaram secos para o peito de Alá. Da internet, espíritos atiçados me pedem para falar sobre a economia e os loucos, o orçamento participativo e os poucos, a obstinação do prefeito e os santos.

O que dizer? Há quem possa dizer alguma coisa? Meu assunto era a economia da Malásia, caso exemplar de desobediência ao dogma liberal: o emergente que enquadrou os capitais e foi o primeiro a se recuperar da crise de 1997.
Mas eu sei lá a quantas anda o liberalismo ou a Malásia depois disso tudo?

Chegam a dizer que estamos vivendo o nascimento de um "mundo novo", uma "nova ordem internacional". Será? Ou será apenas a história se repetindo como farsa?

Certamente, a guerra que se anuncia será diferente da "guerra total" que o mundo conheceu na Era dos Extremos de que falou Hobsbawm. Contudo, infelizmente, o cenário econômico que antecedeu a Segunda Guerra e o cenário atual são assustadoramente parecidos.

Naquela época, assim como hoje, o mundo vivia sob a hipnose do liberalismo econômico e líderes das nações ricas se reuniam para traçar metas de abertura comercial e financeira. Depois de atravessarem sérias crises inflacionárias, os mercados de capitais viviam, também nos anos 20, um clima de "exuberância irracional". E, sem imaginar que previa o futuro, Karl Polany em 1944, buscando entender a relação entre o cenário econômico do pré-guerra e a tragédia que assistia, escreveu que "em todos os lugares, homens e mulheres pareciam ver o dinheiro estável como a necessidade suprema da sociedade humana". Assim como hoje, também naqueles anos, muita gente séria apontava para o estrangulamento da ordem econômica de então, para as tensões que se acumulavam na sociedade e, assim como hoje, a crise precipitou-se com enormes repercussões para todo o mundo.

Se naquela ocasião foi preciso ruir a bolsa de Nova York para que os governantes, de esquerda ou de direita, se dessem conta do frágil terreno em que tinham fincado as suas botas, a explosão das torres gêmeas, ícone supremo da farsa, deverá precipitar uma grave crise econômica que, ademais, já era mais que esperada.

Mas, diga-se de passagem, como farsa que se preze, a tragédia de Nova York é dramaticamente emblemática. A começar pelo totem destruído, com o insuspeito nome de World Trade Center (Centro Mundial do Comércio) e formado por dois obeliscos iguais. Onde já se viu? Ao som de um dueto surdo, ao mundo se anuncia o remake sensacionalista do filme de 29. Outra trágica ironia de toda esta história, refere-se ao modo abrupto como se encerra o debate entre economistas sobre a forma mais provável de aterrissagem da dita "águia americana" (soft landing ou hard landing? Crash landing!). No campo dos absurdos, pelo que nos informa a CNN, Bin Laden, ou quem quer que tenha sido mentor dos ataques, pode ter financiado sua aventura aproveitando-se de inside information para especular contra as empresas que ele mesmo detonou. Trata-se, portanto, de um ousado terrorista ou um fanático investidor? No mercado financeiro, haverá quem diga que o pig spirit deu o tombo em bears e em bulls.

E que ventos nos reservará o futuro? Economistas, como todos os demais profissionais das ciências humanas, mal conseguem avaliar o presente. Quando muito, a análise cuidadosa do passado parece ser a melhor maneira de evitar novos sustos. Se isto é verdade, o pouco que se pode dizer sobre os rumos da economia mundial daqui para frente é que ela provavelmente seguirá caminhos semelhantes aos verificados na década de 30.

Assim, em um primeiro momento, é provável que haja uma recessão mundial, não somente como decorrência de um eventual acirramento do conflito político, mas principalmente porque a economia mundial já vinha dando sinais de desaceleração, fruto de um processo de valorização artificial de ativos financeiros.

E o que foi então este processo? Desde o início dos anos 80, sob pressão de ideólogos de organismos internacionais como FMI e Banco Mundial, foram sendo eliminadas as regulamentações que segmentavam os mercados financeiros. Sem o pendão da fidelidade, e com ajuda de novas tecnologias de informação, avança-se rapidamente para uma exacerbada promiscuidade financeira.

A partir de então, com um empréstimo bancário nos EUA, por exemplo, torna-se possível investir em rentáveis títulos da dívida pública de países emergentes (como o Brasil), que podem ser usados como garantia na compra de ações de um grande empreendimento de hotelaria em Singapura, que pode estar associado a um fundo de pensão espanhol que, por sua vez, poderia apostar contra a moeda do Brasil, que para defende-la venderia mais títulos, e assim por diante.

Evidentemente, assim como aconteceu na década de 20 e como já alertava Keynes, a liberalização de capitais, na medida em que permite uma contaminação entre os vários mercados, amplifica os riscos e as incertezas inerentes do capitalismo, desestimulando o investimento produtivo, reduzindo o crescimento da renda e o nível de emprego e, ao mesmo tempo, enriquecendo os credores líquidos do sistema, isto é, aqueles que têm dinheiro para emprestar.

Ora, foi este o cenário que o avião da America Arlines encontrou pela frente. Faltava só o empurrãozinho. A diferença é que a partir dos ataques aos americanos, o maior beneficiário destes anos de sangria liberal posará cinicamente de grande vítima, enquanto seu presidente satisfaz a gana de seu eleitorado atacando o árabe da vez.

Nós, brasileiros, assim como o resto do mundo, certamente enfrentaremos um período de vacas magras. Frente a uma situação de grave instabilidade econômica e política, as economias tendem a se fechar, buscando defender os mercados internos dos terremotos da economia global. Lembrando mais uma vez o período da Grande Depressão, deverão prevalecer, portanto, estratégias protecionistas e autárquicas, independentemente da coloração ideológica dos governos de plantão.

Infelizmente, contudo, ao que têm sinalizado os atuais gerentes das economias Brasileira e Argentina, corremos o risco de sermos um dos últimos a arredar pé da nau suicida do fundamentalismo liberal. Em 1999, vale lembrar, a despeito de todas as evidências, o governo só abriu mão da paridade cambial quando tocou o nariz na lona, depois de perder 40 bilhões de dólares numa queda de braço com o mercado. Apesar de menos explicito e menos cinematográfico, o fundamentalismo econômico tupi certamente levou a doses de sofrimento tão ou mais inadmissíveis quanto as verificadas no WTC. Mas Alá há de zelar por nós e quem sabe a equipe do Sr. Malan consiga com perspicácia e juízo tomar as rédeas enquanto é tempo.

Curiosamente, apesar do tombo que tomaremos no curto prazo, as perspectivas de longo prazo podem ser mais animadores. Obrigados a nos dedicar mais ao mercado doméstico, o Brasil terá a chance de, talvez, reconstruir sua base industrial, reanimando a produção e o mercado de trabalho. De qualquer modo, dada a profunda desnacionalização que nos impuseram nos últimos anos, a tarefa da reconstrução não será nada tranqüila. Exigirá não só grande esforço e competência técnica, como ainda mais um governo que consiga aglutinar os diversos setores sociais que defendam com clareza os interesses da nação e do poder público.


Marcelo Manzano
[ publicado na Caros Amigos, setembro, 2001 ]