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Esquerda Limpinha

Quem, assim como eu, nasceu e cresceu sob os ventos cinzentos da ditadura militar, acostumou-se a pensar o Brasil a partir da cômoda divisão entre dois grupos muito diferentes de pessoas: a esquerda (progressista, democrática, honesta e bem intencionada) e a direita (autoritária, demagógica, corrupta, canalha e atrasada).


Com inimigos de tamanho calibre, como não sermos todos amigos? Paridos entre os de boa vontade, éramos todos companheiros e, cantando de braços dados, fomos os vetores da redemocratização.


Grande coisa!


Certamente é este ar de redenção, fruto do contraste fácil entre espíritos tão díspares, que contamina até hoje nossa identidade política e compromete, no cerne, a força da esquerda brasileira. Em nosso imaginário franciscano somos, é claro, uma seleta casta de guardiões da moralidade e é este o nosso grande valor e o nosso brilho.


Com o proclamado fim das utopias, aqueles que apesar de devotos não sabiam do que falavam sucumbiram à visão conservadora e simplista que divide a política e os políticos entre os honestos e os corruptos. Muitos daqueles que se vestiam de Marx ou se fantasiavam de Trotsky, hoje, de cara lavada e vista turva, debitam o atraso de nosso país unicamente à 'cambada' de corruptos que domina o poder e a economia. A corrupção endêmica seria nosso cancro, a razão primeira de nossas mazelas.


Ora, mas não é precisamente isto o que pregam os liberais? As causas das desigualdades de classes ou de nações ficam reduzidas ao campo da moral; é apenas disto que precisam para anunciar o fim da história e o triunfo da economia capitalista. E, portanto, desta perspectiva, se algo não vai bem por aqui é porque, como Macunaíma, somos destituídos de caráter, o que aliás nos faz tão alegres, simpáticos e corruptozinhos.


Companheiros! Mordemos a isca. Em queda livre, continuamos cacarejando contra a corrupção, apontando o dedo para a ferida errada. Em meio à barbárie dos dias atuais, não são poucos entre nós os que clamam por ordem e progresso! Ou, na sua versão mais moderna, mercado e progresso!


Mas, sejamos francos, o FMI, O Banco Mundial, o tucanato ilustrado não são todos quase tão limpinhos quanto nós? Aliás, são eles os verdadeiros limpinhos; cheirosos desde o berço. Cartesianos, assépticos, virtuosos e poliglotas.

Portanto, mano, esta praia é a deles.


Apesar do comportamento exemplar dos deputados, senadores e governadores da oposição - incansáveis na defesa da coisa pública - não podemos aceitar que a esquerda limite-se ao papel de abnegada vigilante da ordem e dos valores republicanos. É, pois, justamente a título de defesa da moralidade e do bem comum que o neoliberalismo elegeu o mercado como locus ideal de mediação das relações econômicas e sociais. A "mão invisível" trataria de equacionar de forma imparcial e o mais eficiente possível a difícil relação entre a produção e a distribuição. Em contrapartida, dizem os liberais e os seus colegas de terceira via, o Estado com sua mão pesada, cronicamente corrupto e particularista, seria incapaz de promover o desenvolvimento. Será mesmo?


Em nome das leis de mercado e da obsessão anti-estatal destes anos 90, os economistas do governo FHC, a despeito das frases de efeito do chefe, realizaram a 'política do impossível': fizeram a dívida do setor público saltar de pouco mais de R$ 80 bilhões em 1993 para nada menos que R$ 516 bilhões em 1999. É este o grande escândalo nacional; aliás, é certamente o maior de nossos 500 anos de história.


Mas ao leitor desavisado pode parecer que por se tratar de dívida pública, este rombo histórico seja mais uma prova dos descalabros dos governadores e prefeitos, dos deputados e seus parentes, dos senadores e seus jatinhos. Coisa nenhuma. Apesar da imprensa chapa branca não gostar muito de falar sobre o assunto, a administração pública brasileira (em seus vários níveis de governo) é superavitária. Isto é: arrecada mais do que gasta. Para se ter uma idéia, em 1999 o setor público em seu conjunto economizou R$ 35 bilhões. Viva!!! Coisa nenhuma. Para pagar os juros daquela famigerada dívida fomos obrigados a torrar estes 35 e tomar emprestado outros quarentinha. E aí entram em cena Dona Mirian e Dona Lilian e anunciam: déficit nas contas públicas; e pau no Estado. Mas o dinheiro não foi usado para seduzir (com as maiores taxas de juros do mundo!) as mãos invisíveis dos agentes financeiros? Não é pelo mercado e para ele que estamos fazendo este grande esforço?


A cada raiar do sol, nós, brasileiros e brasileiras, temos gasto nos últimos anos mais de R$ 200 milhões a título de pagamento de juros da dívida (interna e externa). Duzentinhos, uma em cima da outra, a cada santo dia! Ou seja, enquanto no último final de semana você foi com a namorada ao cinema ou foi tomar cerveja com os amigos, o Brasil (isto é, você, sua namorada, seus amigos, eu, e mais um monte de gente) transferiu R$ 400 mi para os mercados financeiros, nacionais e estrangeiros. Nós, através de nossos legítimos representantes, pegamos o equivalente ao orçamento anual de uma universidade como a Unicamp (ou de 40 universidades federais) e entregamos na mão de instituições financeiras que defendem os interesses privados de seus poucos e felizes investidores (nem você, nem sua namorada, seus amigos, eu ou aquele monte de gente). Ora, o canalha juiz Lalau e sua trupe de corruptos, talvez a maior quadrilha dos tempos de tucanato, embolsou em quatro anos R$ 169 milhões. Nada que um dia de juros não resolva.


Com os juros dos outros 364 dias, talvez pudéssemos priorizar os hospitais públicos, as escolas, as creches, o asfalto, a polícia, os salários dos funcionários públicos, a previdência, o FGTS, a habitação, a agricultura, a reforma agrária, a moradia, ... que beleza.


Evidentemente, é preciso esclarecer que não se trata de menosprezar o problema da corrupção em nosso país, nem muito menos esmorecer quanto ao seu combate. Ocorre que a despeito da corrupção estar na raiz da nossa estrutura política e ser a base de sustentação das eternas oligarquias no poder, ela não constitui um problema econômico em si, nem aqui, nem em qualquer outro país.


Nosso atraso, nossa dependência de capitais estrangeiros, nossa pobreza, decorrem antes de escolhas de políticas econômicas excludentes e francamente desfavoráveis aos interesses do conjunto da população. Se não formos capazes de entender e quem sabe ajudar a difundir as verdadeiras causas dos processos de exclusão e de dependência que meteram nossa economia nos anos 90, terminaremos nossos dias como atônitos coroinhas em meio ao "ménage" das finanças e dos globalizados.
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Marcelo Manzano
[ publicado na Caros Amigos, outubro, 2000]