13.3.04

Média? Só se for com pão e manteiga

Há alguns meses atrás a imprensa divulgou que os trabalhadores brasileiros com renda de até 12 salários mínimos trocam de carro a cada 62 anos.
Entretanto, como a esperança de vida no país é hoje de 65 anos, podería-se concluir que aqueles trabalhadores só conseguirão trocar o seu velotrol de rodas coloridas por um automóvel alguns dias antes de baterem com as botas.

Evidentemente, não era a “média de anos sem trocar de carro” a informação relevante, mas sim o fato de que entre a classe trabalhadora com renda até R$ 2.880,00 são pouquíssimos aqueles que conseguem comprar um carro.

Ora, este tipo de equívoco que, neste exemplo, fica patente e salta aos olhos pelo seu absurdo, é muitas vezes difícil de ser identificado quando o assunto em questão é mais complexo ou menos palpável. Quando não temos como confrontar a informação com algo que seja de nosso domínio, ficamos na mão dos especialistas e passamos a depender da credibilidade que confiamos a eles, nada mais. Por exemplo, basta alguém lançar ao vento uma “taxa de equilíbrio” que logo surgirá uma legião de crédulos, ávida por defendê-la.

Superávit fiscal de 4,25%, relação dívida/PIB de 30%, juros reais de 8%, entre outros, são os números da cabalística econômica que há uma década orientam uma estratégia que promete o paraíso após o purgatório. Insistimos na mágica dos números, na ilusão de que se dividirmos o nosso passivo externo pelo produto nacional ou, quem sabe, pela altura do cristo redentor, conseguiremos nos fazer notar pelo investidor estrangeiro.

Estancada a “ameaça inflacionária”, o número do momento é a taxa de câmbio e, segundo o Ministro Palocci, a taxa de câmbio ideal é a taxa de equilíbrio, aquela determinada pelo mercado.

Vejamos. Quando se fala de equilíbrio no mercado de câmbio, pretende-se dizer que a taxa de câmbio (que é o preço da nossa moeda medido em dólares) será determinada pela correlação de forças entre compradores e vendedores de dólares. Mas esta correlação de forças não é fruto do sopro divino: depende das escolhas políticas feitas pelas autoridades econômicas. Por exemplo, nos últimos anos, o governo brasileiro preferiu manter um baixo volume de reservas em moeda estrangeira no Banco Central. Isto significa que ao deixar de comprar dólares em grande quantidade, o governo reduziu a demanda por dólares, desviando a taxa de câmbio do tal ponto de equilíbrio. Além disso, como o governo tem oferecido a investidores privados títulos públicos com seguro contra eventuais oscilações na taxa de câmbio (o chamado hedge cambial), estes investidores não demandam dólares para se proteger do risco cambial e, mais uma vez, a taxa de câmbio acaba se desviando do seu suposto ponto de equilíbrio. Pior: se os brasileiros tivessem mais dinheiro em 2003 para comer e se vestir, também se notaria uma oscilação na taxa de câmbio, visto que as importações cresceriam, enxugando a quantidade de dólares no mercado.

Cito estes exemplos apenas para apontar como o tal equilíbrio é precário e, mais do que isto, é fruto de decisões autônomas do governo – por mais que alguns de seus membros as ignorem. O Feitiço que a taxa de equilíbrio exerce sobre os crédulos é da mesma natureza daquele que faz editores de economia publicarem as estatísticas sobre aquisição de automóvel pelos pobres sem ao menos questioná-las. Esquecem-se, em ambos os casos, que quando se está tratando de médias ou de taxas de equilíbrio, é imprescindível que se analise o que é que se está pesando em cada lado da balança. O valor de nossa taxa de câmbio, que aparentemente brota das leis da oferta e procura, depende de um conjunto de escolhas tomadas pelo governo local e, pior do que isto, depende das escolhas tomadas pelos governos de outros países. Bush mantém o dólar barato porque lhe interessa que os EUA tenham mais alguns meses de crescimento econômico e com isso ele possa vencer as eleições. No Brasil mantemos o real valorizado porque escolhemos navegar com um baixíssimo nível de reservas, optamos por arcar com os riscos cambiais dos investidores privados e, mais grave do que tudo, mantivemos a economia deprimida, com queda da renda e aumento do desemprego.

Noves fora, eliminando todos estes aspectos do cenário macroeconômico, pode-se até concluir que no Brasil as taxas de câmbio encontram-se em perfeito equilíbrio. Entretanto, para quem gosta de brincar de balança, o desafio é sentar num prato este delicado equilíbrio do mercado de câmbio e, no outro, um mundaréu de trabalhadores que adorariam trocar de carro de dez em dez anos, fazer três refeições ao dia e, quem sabe, comer um pão com manteiga no lanche.


Marcelo Manzano
[ publicado na Caros Amigos - março, 2004 ]