1.8.03

Quem dá de comer ao dragão?

É certo que o consenso é uma possibilidade remota entre os economistas. Lembrando a velha anedota, entre dois economistas existem pelo menos três opiniões diferentes. Seguindo na brincadeira, eu diria ainda que entre dez economistas é pouco provável que existam mais do que aquelas mesmas três opiniões.
Entre os economistas, identificamos três grandes escolas de pensamento (Marxistas, Keynesianos e Neo-clássicos) e alguns blends mais contemporâneos que incorporam elementos de uma e outra escola. Entre esses, destacam-se os Pós-keynesianos (mais à esquerda), que fundem às proposições de Keynes alguns elementos da crítica marxista, e os Neo-keynesianos (mais à direita), que esterilizam a crítica Keynesiana incorporando-a à matriz Neo-clássica.

Portanto, ao contrário do que sugere a marola do debate econômico, são poucas as naus dispostas na regata, e o tamanho das vagas deve-se ao fato de que singram em sentido inverso.

Neste mar de poucos amigos, o debate sobre a criação da moeda e as causas da inflação são, talvez, os grandes focos de discórdia. A partir da visão que cada escola tem destes temas, derivam paradigmas antagônicos e irreconciliáveis.

Comecemos pela moeda. Segundo a tradição ortodoxa (neo-clássica, monetarista), a quantidade de moeda disponível na economia é controlada exogenamente, ou seja, a instituição responsável pela gestão da moeda (o Banco Central) seria capaz de controlar com precisão o tamanho da base monetária e ajustá-la de acordo com as necessidades dos negócios. Nesta concepção, se houver um descompasso entre a oferta de moeda e a produção de bens e serviços, haverá necessariamente uma alteração nos preços. Dizem os monetaristas que em geral este descompasso ocorre por lassidão dos governos, que tendem a emitir moeda de forma irresponsável, aquecendo a demanda acima do recomendável e provocando o dragão da inflação.

Já os economistas heterodoxos, Pós-keynesianos, pensam estas questões de maneira muito diferente. Para eles, a criação de moeda deixou há muito de ser um monopólio do Estado. Com a evolução dos instrumentos de crédito, o sistema bancário é capaz de gerar moeda endogenamente. Ou seja, nesta concepção, apesar da moeda continuar sendo um bem público e sua criação uma concessão do Estado, a quantidade de moeda disponível na economia não pode ser plenamente controlada pelos Bancos Centrais. E isto faz toda a diferença.

Para entender melhor esta idéia, vale a pena pensar num rápido exemplo: suponha que o Banco Itaú empreste R$ 500,00 para o João reformar a sua casa. Como o João não saca o dinheiro imediatamente, o Banco pode emprestar para outro os R$ 500,00 que o João deixou depositado no Banco. Para isso, o Banco é obrigado a repassar ao Banco Central (BC) o depósito compulsório, que digamos seria de 20%. Dos R$ 500,00 originais na conta corrente do João, o Banco Itaú deposita então R$ 100,00 no BC e empresta os outros R$ 400,00 para a D. Luiza comprar um fogão nas Casas Bahia. De lá, os R$ 400,00 seguem para o Bradesco que recolhem 20% (R$ 80,00) para o BC e empresta R$ 320 o Dr. Augusto comprar um rádio. Enfim, através de sucessivas operações de crédito, o sistema bancário (e não um banco individualmente!) consegue criar moeda com relativa independência do Banco Central. Na verdade, como as operações de crédito bancário são hoje infinitamente mais complexas do que as do exemplo acima, o potencial do multiplicador monetário é ainda muito maior.

Ora, se o sistema bancário é capaz de ajustar a disponibilidade de dinheiro na economia de acordo com as necessidades dos negócios, então não faz sentido imaginar que a inflação decorra de emissões irresponsáveis dos governos. Invertendo o raciocínio dos monetaristas, os heterodoxos diriam que é a variação dos preços que demanda uma maior quantidade de moeda na economia, prontamente ofertada pelo sistema bancário.

Aqui, a inflação seria um fenômeno decorrente de tensões entre os preços relativos da economia. Como os diversos setores da economia são afetados de modo desigual pelos choques inerentes ao funcionamento da economia (oscilações na taxa de câmbio, dissídios coletivos, aumento das taxas de juros, diferentes taxas de produtividade, etc.) surgem inevitavelmente repiques inflacionários que demandam uma ampliação da quantidade de moeda.

Conseqüentemente, não há como botar a economia para funcionar sem que se verifique alguma tendência inflacionária - quanto mais quando se trata de um país em desenvolvimento, onde os diferentes graus de maturidade dos vários setores amplificam as tensões e os desequilíbrios no sistema de preços relativos.

Feitas estas considerações, e sabendo que existem boas razões para se acreditar que a inflação gera moeda e não o contrário, convido o leitor a se lembrar do país em que vivemos. A projeção de inflação para os próximos 12 meses é de 7% ao ano, ou algo próximo de 0,5% ao mês. Para um país como o nosso, está bom de mais. E haveria um caminhão de razões para o Banco Central reduzir a taxa de juros real – é bom lembrar que só os tolos reparam nos juros nominais e há muito a ilusão monetária deixou de ser um problema para o capital.

Porém, o monetarismo tardio do BC parece ter razões que o bom senso desconhece. Primeiro, pela fixação extemporânea com o dragão da inflação que, diga-se de passagem, é o grande bicho-papão dos credores, que deixam de ganhar dinheiro na mesma medida da inflação. Segundo, porque a arma para atacar o dragão derruba toda a economia para deixar o bichinho minguar de inanição. Os juros no patamar atual são efetivos no combate aos preços não porque ajustam a quantidade de moeda às necessidade dos negócios, mas porque, em doses cavalares, impedem que os choques de custos que afetaram a economia nos últimos tempos sejam sancionados pela oferta de moeda. E, só para lembrar, os maiores choques de custos que ameaçam a meta inflacionária atualmente são os as tarifas dos serviços públicos e os dissídios trabalhistas. Quem diria?

Mas, como disse antes, desta discordância aparentemente pontual no que se refere à gestão da moeda na economia, derivam proposições de política econômica claramente antagônicas. Quem se esquece que a moeda atende a dois senhores (BC e Sistema Bancário), conclui que os desequilíbrios entre oferta e demanda por moeda são de responsabilidade exclusiva do governo e acaba recomendando o ajuste fiscal, condenando os déficits públicos como principal causa da inflação. Ao estabelecer esta causalidade e desdenharem da emissão endógena de moeda, os austeros monetaristas transferem o benefício da senhoriagem (possibilidade de se financiar emitindo moeda nova) ao setor privado, abrindo mão desta prerrogativa do Estado que, como mostra a história, é peça chave para o desenvolvimento econômico.

Em suma, a miopia monetarista, além de induzir a políticas de juros equivocadas e regressivas, desdobra-se em uma política fiscal (gastos públicos) que coloca o Estado a reboque do setor privado, visto que a autoridade monetária subordina a emissão de moeda ao ritmo e quantidades estabelecidos pelo mercado. É o que se chama modernamente de responsabilidade fiscal.

A quem esperava por um governo de mudança, cabe torcer para que ainda haja tempo para trocar de barca e abandonar a nau que há anos tem nos conduzido ao redemoinho dos juros altos, do aperto fiscal e do endividamento sem fim.


Marcelo Manzano
[ publicado na Caros Amigos - agosto, 2003 ]

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