17.3.02

O lixo revisitado

Há tempos atrás a TV Cultura apresentou um documentário bastante emblemático deste nosso mundinho em fim de linha. Tratava do problema do lixo "exportado" pela Alemanha com destino à Indonésia; mais precisamente aos garrafeiros da Indonésia. Explico-me: como o processo de reciclagem do lixo é muito caro para ser realizado pelos padrões alemães (salários elevados, encargos sociais escorchantes, normas ambientais rigorosas, etc.), o governo alemão preferiu vender o seu excedente de lixo para países da periferia mundial, que, a um custo muito menor, podem transformar o lixo em matéria-prima a ser reutilizada nas indústrias destes países.


É isso mesmo. Por mais absurdo que possa parecer, foi neste mercado esdrúxulo que a Indonésia encontrou um nicho econômico a ser explorado. "O nicho do lixo é o bicho!; o nicho do lixo é o bicho!.." devem gritar os garrafeiros em passeata pela defesa dos interesses da categoria profissional. Absurdo ou não, o fato é que, certamente por alguma vantagem comparativa a Indonésia optou por especializar-se na reciclagem e posterior utilização do lixo dos países avançados - e vá ser ecológico assim na cochinchina!


Contudo, entre todos os dramas vividos por aquela gente, que a noite reunia suas famílias em torno do lixo para separar e limpar o lixo - do lixo - o mais impressionante e surrealista daquela situação era o seu aspecto, digamos, político-econômico: entre aquela miserável população lavadora de garrafas criou-se um caldo político que fez surgir um movimento nacionalista, movimento que se opunha frontalmente à desregulamentação do mercado do lixo. Entre o barulho das latas e garrafas, podia-se então ouvir os bordões protecionistas: "o lixo é nosso"; "abaixo a concorrência dos importados".


Tristes trópicos. Assim como nós, a Indonésia - ou, sejamos justos, o Sr. Suharto, aquele ditador bandido que, além dos 4 bilhões de dólares na Suíça, presenteou sua esposa com dez mil pares de sapatos - também abriu seus mercados à concorrência dos (sub)produtos estrangeiros, na esperança de com isto oxigenar sua economia e, quem sabe, partir para um desenvolvimento sustentado (... no lixo?). Entretanto, talvez pela defasagem cambial ou talvez em função da melhor competitividade do produto estrangeiro (e eu fico imaginando como um lixo pode ser mais competitivo que o outro: mais limpinho; separado por cores; rico em fibras; com pouca gordura saturada; ...), ocorreu que o lixo vindo da Alemanha (principal parceiro comercial da Indonésia neste setor de atividade econômica) inundou o mercado interno de lixo, fazendo cair o preço desta commodity de derradeira geração e inviabilizando assim a renda dos garrafeiros indonésios.


Confesso que quando acordei na manha seguinte, ao encarar imóvel meu despertador chinês, senti uma satisfação inusitada: pelo menos os importados daqui, sendo bens intermediários e de consumo final (visto que ainda não são sucata), nos conferem certo estatuto de nação de primeira linha. E eu, que tantas vezes me bati contra esta invasão desmedida de quinquilharias, indignando-me por saber que cada três carros importados que vejo nas ruas correspondem a um emprego a menos no nosso país, fiquei aliviado. Certamente há caminhos e opções ainda piores do que os nossos.

Marcelo Manzano
[ publicado no Diário do Litoral - 17/03/2002 ]

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