1.12.00

Ponto sem nó

Economia de mercado. Infelizmente é sob esta rubrica de mau gosto que o nosso mundo azul encerrou o século 20. Gostemos ou não, o fato é que apesar da estúpida injustiça social que marca os dias de hoje, um mar de gente esfolada, fodida e mal paga, continua dando sangue para sustentar na crista da onda o barquinho dourado de um punhado de bem nascidos.

Mas como é que pode? Como é que um sistema tão desigual e desumano como o capitalista se mantém de pé por tanto tempo?

Muita saliva e muita tinta já se gastou sobre o assunto, mas, apesar disso e do risco, peço licença ao leitor para meter minha cunha na conversa.

Antes de incorrer na tentação cômoda e moralista de enxergar o sistema capitalista como uma criação maquiavélica daqueles que carregam as chaves do cofre, devemos talvez pensá-lo como expressão suprema de uns tantos valores tidos como intocáveis pela gente contemporânea. A meu ver, a surpreendente sobrevida da economia de mercado não pode ser bem compreendida se não atentarmos para a obsessão que nós, viventes de esquerda ou de direita, temos com ideais como o da Racionalidade ou da Liberdade.

Os ares do Iluminismo e da Revolução
Burguesa, que oxigenaram as cabeças e a vida dos tataravós de nossos
avós, condensaram-se ao longo dos anos em nuvem espessa e hoje se
precipitam como ideais tacanhos do liberalismo econômico. O tal
mercado é a síntese perfeita desta hipertrofia iluminista. Em nome
do homem e para o homem, desenvolvemos uma espécie de
"máquina" auto-regulada (a tal mão invisível) onde o
homem não tem lugar, nem sentido. Apesar da promessa grandiloqüente
de um mundo melhor, de mais prazer e menos dor, os nobres princípios
da razão e do livre-arbítrio, que tanta marola fizeram há alguns
poucos séculos, reduziram-se a um conjunto de condutas mesquinhas
que, na lógica do utilitarismo capitalista, tornam-se desumanas e
contraditórias.


Ora, mas é mesmo tudo muito estranho.
Quem diria que a qualidade da Razão, marca primeira de nossa espécie
e de que tanto nos gabamos, terminaria seus dias reduzida a mera
habilidade de distinguir o caminho mais curto (menor custo/dor) para
se alcançar um determinado objetivo (maior lucro/prazer). Sob o
prisma do funcionalismo deterministas que pauta nossos tempos, a
Razão ganha estatuto de sexto sentido, capaz de processar em tempo
real cálculos de custo-benefício que, supostamente, nos levarão ao
paraíso.

Pois de certo perdemos o senso. O
'cálculo econômico', que se alastra para além dos limites da
produção e contamina quase todas as esferas de nossas vidas, antes
de nos capacitar para o livre-arbítrio ou para o desfrute de nossa
condição humana, nos impele ao terrível funil da inexorabilidade
científica. Trajetórias ótimas, ações maximizadoras, que puta
sufoco! O tal 'cálculo econômico' e seu determinismo autoritário
são muito mais opressivos e eficientes do que qualquer Deus, Stalin
ou outro Grande Irmão que tenha reinado no passado.

E a despeito das infinitas variáveis
que adicionamos às equações, do número de eixos e semi-eixos que
cortam nossos gráficos ou da flexibilidade adaptativa que compõem
nossos métodos, o que nos distingue de um rato ou de um hipopótamo
é, ainda, a coragem de peitar nossa própria natureza. O pobre rato
não faz nada que contrarie seu roteiro darwinista. Cada passo, cada
mordida, cada trepada que dá, será, sempre, apenas mais um ato
triste de uma vida rigidamente controlada pela racionalidade de seu
instinto de sobrevivência. E economicamente falando, portanto, os
ratos, as amebas ou os leões são, certamente, muito mais 'racionais'
do que qualquer um de nós.


A graça de nossa condição humana, o
grande barato de nossa vida mundana está na possibilidade de
inventarmos enredos que não fazem sentido a priori. O apito que
atravessa o samba como no "país tropical" de Jorge Ben, a
gagueira de uma cuíca, as arranhadas de Jimmy Page ou o brusco tombo
no ritmo repetitivo de "I want you", dos Beatles, são
expressões agudas do espírito libertário que habita a razão
crítica e 'verdadeiramente' humana.

Ou será que há funcionalidade ou
qualquer atitude maximizadora que explique uma bela overdose ou um
tiro na têmpora, em nome daquela morena que um dia dormiu molhada ao
meu lado. Se há algo que realmente nos separa do mundo animal,
suspeito que seja a possibilidade de nos retirarmos de cena, de fugir
do contexto ou de habitar utopias. A abstração científica é
certamente um traço de nossa humanidade, porém menos como método do
que como arte. Uma catedral pontiaguda, uma sintética expressão
matemática, um discurso de Churchil ou um grito risonho da Elis
Regina, valem tanto quanto o bife que minha avó fritava com quiabo,
visto que não há equivalência possível, e muito menos razão para
buscá-la.

Curiosamente, no capitalismo, os
anéis, os charutos, os pára-choques de prata e todos os símbolos de
pompa e luxo que o alimentam, são ícones da irracionalidade e da
exuberância que todos buscamos. Aliás, talvez o grande erro da
esquerda no século vinte foi ter menosprezado a força destes ideais
na mentalidade contemporânea. A opção pelo 'pobrismo' e a crença
no trabalho não contaram com a popularidade esperada pelo socialismo
científico.


Por outro lado, apesar de sinalizar
com o ócio e a esbórnia consumista, a lógica crescentemente
alienante e funcionalista do capitalismo tem produzido o utilitarismo
mais chinfrim de que se tem notícias. A idéia de consumir, que
originalmente poderia sugerir um ato de deleite ou de exuberância
(como era para os deuses gregos ou astecas), ganha o significado de
uma função-objetivo onde, ao final do processo, há de se mensurar
algum benefício. Obcecados em descobrir a utilidade de cada ato de
consumo, freqüentemente nos perdemos, sem saber qual é o
"metro" que mede nossa satisfação. Será bom mesmo este
vinho? Serão bonitas as lanternas do novo carro? Gostei mesmo do
filme iraniano? E o bife com quiabo, estava gostoso? Será que gosto
de cachorro? Estou com frio? Sou louco? Sou eu?

Mas, se é que estamos loucos (quem
poderá dizê-lo), não parece muito razoável jogar a culpa,
mecanicamente, no funcionamento do modo de produção capitalista.
Como farejou a geração dos anos 60, a angústia e a miséria de
nossa sociedade são frutos, antes de qualquer coisa, da maneira
acabrunhada e conservadora com que conduzimos as bandeiras do
iluminismo. E se hoje o capitalismo triunfa cruel e injusto, é
porque, mesmo sendo desigual do ponto de vista econômico e social,
nutre e é nutrido de uma sociedade fascinada com o desenvolvimento de
um aparato racional que promete automatizar a nossa insensata busca
pelo prazer.

Benção Vó!

Marcelo Manzano
[publicado na Caros Amigos, dezembro, 2000]

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